A
Paz de Zamora. Coimbra 1143
«(…) No entanto, ainda hoje me
pergunto porque não aproveitou Chamoa esses dias de desilusão para revelar a intriga
de Compostela. Porque preferiu uma artimanha mais primitiva? Se tivesse
contado o que sabia, sabotaria o casamento com Mafalda da Sabóia. Mas não o
fez. Qual jovem tola enganada pelo enamorado, preferiu enfiar-lhe um par de cor…
a promover uma golpada política. Mulheres, vá um homem entendê-las...
Rio Arade. Agosto de 1143
Depois de entrar na foz do Arade,
o pequeno barco dirigiu-se para a margem direita, lançando âncora perto da praia.
Rindo, os quatro saltámos para a água, que nos dava pelos joelhos. Ao chegarmos
à areia seca, dirigimo-nos a uma tenda, armada a cem passos, à volta da qual se
viam vinte guerreiros cobertos por mantos castanhos, nenhum deles preocupado connosco,
pois sabiam quem éramos. Pouco depois, Zaida saiu da tenda e olhou para Mem. Estava
ainda mais bonita do que eu a recordava, envolta numa bela túnica azul-clara, ligeiramente
transparente. Apanhara os cabelos escuros numa trança longa, que lhe caía pelas
costas, e os seus olhos negros, como azeitonas brilhantes, revelavam uma excitação
esfuziante e quase infantil. Saudou-nos com curtas vénias, mas não se conteve e
abraçou o almocreve, emocionada. Mem querido... Este corou, disse que folgava em
sabê-la bem e perguntou-lhe pela filha. A princesa moura anunciou que ela se chamava
Maryam, nome de uma antiga poetisa de Silves. Depois, olhou para Chamoa e sorriu:
sei que também haveis tido dois meninos! Comovida, enlaçou a minha cunhada, que,
de olhos molhados, revelou os nomes dos rebentos mais novos, acrescentando: estou
certa de que se dariam bem com a Maryam.
Soltando-a, Zaida olhou
finalmente para Afonso Henriques e adiantou que talvez um dia as crianças de ambos
se pudessem conhecer. O príncipe sorriu-lhe, mas logo perguntou por Ibn Qasi, de
quem há muito ouvia falar. Zaida apontou a porta da tenda, por onde o príncipe
entrou, enquanto ela me abraçava fortemente. Senti os seus seios apertados contra
o meu peito e corei, ouvindo-a dizer: é bom ver-vos também, amigo Lourenço
Viegas. A bela princesa era muito bonita e calorosa e mentiria se dissesse que
não houve um dia em que a desejei. Nunca deixei que isso acontecesse, por amor à
minha Maria, mas, se alguma vez a infidelidade me apanhasse, teria sido com Zaida.
Entrai também, disse-me ela.
A tenda era espaçosa e existiam vários
almofadões e esteiras pousados no chão, sendo que Ibn Qasi estava sentado num deles,
mas logo se levantou para nos receber. De cara alegre e confiante, barba bem afiada
e turbante na cabeça, cumprimentou-nos um a um, sorrindo a Chamoa e gabando a
sua extrema beleza. É verdade o que Zaida me disse, sois um astro luminoso!
A minha cunhada sorriu lisonjeada,
enquanto Ibn Qasi nos apontava os almofadões e nos sentávamos à sua volta, exceptuando
Mem, que discretamente ficara lá fora. Após um bater de palmas do anfitrião, dois
criados entraram pelas traseiras da tenda, cada um com duas travessas nas mãos.
Em cima delas, vi regueifas, sopas, açordas, pedaços de atum e javaii, mel, alfaces
e espinafres, azeitonas, bananas e cerejas, laranjas e arroz, bem como vinhos brancos
e tintos. Com deleite, comemos e bebemos, ouvindo Ibn Qasi resumir-nos a história
de Silves, famosa pelos seus poetas e pelas suas flores». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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