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Leão e Andaluz
As tensões sociais atrasam a Reconquista
«(…) Certamente, as cadeias da servidão começam a
desatar-se, mas com que dificuldade: o servo que não seja reconhecido pode encontrar
refúgio em Leão, mas todo aquele, mouro ou cristão (irmanavam-se bem no
sofrimento!), que fosse provado como servo por homens bons e verdadeiros, seria
entregue ao seu senhor sem sentença. As transferências de propriedade agrária
entre os presores de cristãos bem como a rivalidade senhorial clero-nobreza
assumem proporções bastantes para que o concílio legisle: nenhum homem seja
ousado a comprar herdade de servo da igreja ou perde-a e o seu preço; nenhum
nobre compre solar de júnior. Por outro lado, a rivalidade, ou, melhor, a
contradição clero secular-clero regular deflagra em luta aberta como se vê nas
palavras: nenhum homem seja ousado a receber abade, abadessa ou monge, pois
estes devem estar subordinados à autoridade dos bispos e os monges à dos abades.
Em suma, a gravidade da luta social pode sentir-se
pulsar na disposição: todo aquele que matar outro e puder fugir, regresse nove
dias depois sem coima [isto é, sem multa judicial] e acautele-se de seu inimigo.
A guerra privada é assim permitida não já entre nobres mas de família a
família. Deve dizer-se mais? Concluindo: a aceitação resignada dos concelhos e
as cedências a peões e cavaleiros corresponde a uma necessidade de equilíbrio
por parte do Poder que, além da pressão horizontal dos outros senhores cristãos
e das armas do Islão, é sacudido de baixo por um impulso que só a cedência
política, neste caso, o reconhecimento dos concelhos das cidades do reino de
Leão e seus alfozes, parece capaz de aplacar e de suster. Estas tensões sociais
e a pouca vontade dos moçárabes em sofrerem o jugo dos seus correligionários
contam-se entre os factores sociais decisivos da lentidão da Reconquista mesmo
quando, pela sua fraqueza política e militar os reinos islâmicos das taifas,
nascidos da queda do califado pareciam oferecer docilmente o colo ao cutelo da
cruz.
O Andaluz e o Garbe (ou Ocidente)
Para os exilados no Magrebe o Andaluz soava como
paraíso perdido e os seus lugares brilhavam entre as árvores. Oitenta cidades
principais e trezentas médias encontrou Ibne Saíde quando Córdova e Sevilha se
inclinavam já sob o jugo cristão. Só no Guadalquivir haveria cerca de doze mil
aldeias e lugares. A terra desentranhava-se em frutos de climas frios e climas quentes:
a castanha e a cana-de-açúcar; a noz, a avelã e as bananas, os figos, as
passas, os pêssegos, as romãs, as amêndoas, as laranjas, os limões. Em cereais,
o Tejo era um Nilo.
Múrcia dispunha, ao menos no século XIII, das
melhores mãos do Andaluz e, porventura, da Europa. Mãos que teciam panos de ouro
e prata, tapetes, cotas de malha, peitorais, armaduras, escudos, espadas,
lanças, elmos, arcos, flechas, selas, freios, cabeçadas, facas, tesouras de
ferro e bronze, vidros, olaria. Competiam com Múrcia, Granada, Baza, Almeria,
Málaga. E que saudades de Toledo, Saragoça, Beja, Córdova e Sevilha! E nos séculos
XI e XII? Perguntem ao Cid quem forjou a espada Tizona e criou o seu cavalo
Babieca. Perguntem a Xátiva pela manufactura de papel. Perguntem pelos
azulejos, os mosaicos, as casas caiadas de branco por dentro e por fora. Perguntem
a Toledo pelas espadas, a Córdova e Beja pela indústria de couros e tecidos. Rebeliões
anti-senhoriais não faltaram antes do século XI, mas por que é que só agora
triunfam? Não estará a resposta no aumento do nível das forças produtivas ou
este seria o mesmo do século VIII quando os servos se rebelaram no reinado de
Aurélio e foram de novo reduzidos à servidão?
Vimos que o movimento da evolução social da
Península partia do Andaluz. De lá se transmitiu, embora lentamente, às aldeias
serranas do Norte. A civilização muçulmana do Andaluz entornou todo um caudal
de novas técnicas e aperfeiçoou outras que modificaram qualitativamente a
produção agrícola e, em algumas cidades principais, a indústria de armamentos,
de fiação, de cerâmica, o trabalho dos metais e dos couros, a construção naval
e a pesca. Esta alteração qualitativa das forças produtivas aumentou o superavit
dos produtos agrícolas e artesanais que sustentaram uma luta de libertação e
alteraram as estruturas da produção e do mercado». In António Borges Coelho, Comunas
ou Concelhos, Editorial Caminho, colecção Universitária, Lisboa, 1986.
Cortesia de Caminho/JDACT