segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Cal para Caiar o Universo. Ruy Ventura. «O fundamental é que não acabemos por dentro, e o que temos que estabelecer é como vamos viver num mundo tão complicado»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cartas e quadras de Agostinho da Silva
«Contactei com Agostinho da Silva relativamente jovem. Não pessoalmente. Nunca o conheci pessoalmente. Mantivemos, apesar disso, um curto intercâmbio epistolar. Tudo partiu de uma iniciativa do poeta Nicolau Saião que, tendo lido um artigo que escrevi e li numa rádio em Portalegre sobre José Régio, achou conveniente e não despropositado eu enviar cópia desse texto a alguns amigos ainda vivos do autor de Fado, um dos quais Agostinho da Silva e a outra Matilde Rosa Araújo. Esse texto foi enviado. Esperava eu não ter feedback (como agora se diz...). Não pensava que o professor Agostinho da Silva fosse uma pessoa indelicada, mas considerava que uma pessoa mergulhada em pensamentos, muito mais importantes do que os de um jovem alentejano a escrever sobre José Régio, não teria tempo para responder. O facto é que obtive resposta. E durante cerca de um ano, um ano e meio, até pouco tempo antes de ele falecer, houve alguma troca de correspondência, troca essa que me enriqueceu bastante, porque não eram cartas meramente circunstanciais, mas cartas ou pequenos bilhetes que de uma forma concentrada e quase aforística transportavam sínteses e confirmações das leituras que eu fazia da obra do professor Agostinho da Silva.
Sobre vários assuntos comunicava nas cartas. Às vezes aproveitando o pretexto de alguma coisa que eu havia escrito nas minhas. Posso partilhar alguns extractos convosco. Sobre a questão das comunidades linguísticas, das comunidades económicas e da integração europeia, a dada altura, em 1993, escreveu-me:

A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, que aqui delegou no Embaixador José Aparecido Oliveira, e que é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor, apesar de qualquer sentença contra Xanana. Capital? Cada um a tenha dentro de si, e, no mapa, a adore como lhe for próprio em todos os aspectos do concreto e do transcendente.

De uma maneira muito resumida, concentra-se aqui todo um pensamento sobre as comunidades linguísticas e sobre a importância da língua como pátria. Sobre a vivência interior e exterior, um problema que deveria mobilizar o pensamento de todos os humanos, em determinado momento, perante uma certa desilusão que se notava nas cartas relativa ao seu apostolado (chega a dizer: em Portugal, já se escreveu bastante. Falta agir), usa uma máxima que passou a ser para mim, em conjunto com outras, quase uma regra de vida:

O fundamental é que não acabemos por dentro, e o que temos que estabelecer é como vamos viver num mundo tão complicado. Temos que viver plenamente por dentro e daí tirar a cal para caiar o universo.

Passou a ser quase uma máxima de vida para mim. Tirar da vivência do dia a dia a cal para caiar o universo... A relação entre o individual e o universal... O professor Agostinho, nesse ano e meio de intercâmbio, tinha grandes manifestações de humanidade. Uma pessoa que dedicava a sua vida à especulação filosófica, preocupava-se ainda com o facto de eu ter o meu pai internado no Hospital de São José, em Lisboa. E teve o cuidado, numa carta, de me perguntar com evoluía o estado de saúde dele, quando a minha referência ao facto havia sido meramente marginal. Ainda sobre o pensamento dele e esses quase aforismos que escrevia, e que eu tive o privilégio de receber, vinha frequentemente à colação a religião, que era fundamental nele, aliás. Não só o culto do Espírito Santo, mas toda uma maneira própria de ver esses assuntos. A dada altura escreveu:

Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for, criemos. E para o enjoo que tanta vez o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja». In Ruy Ventura, A Cal para Caiar o Universo, arquivors.com/ruy_acal.pdf, 2007, wikipedia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT