domingo, 21 de julho de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem à ponta dos meus dedos o ouro da volúpia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Amavisse
[…]
Há um incêndio de angústia e de sons
Sobre os instentos. E no corpo da tarde
Se fez uma ferida. A mulher emergiu
Descompassada no de dentro da outra:
Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.
Tinha o dorso de uns rios: quebradiço
E terroso. O peito carregado de ametistas.
Uma mulher me viu no roxo das ciladas:
Esculpindo de novo teu rosto no vazio.

Os ponteiros de anil no esguio das águas.
Tua sombra azulada repensando os rios
E agudíssimas horas atravessando o leito
Das barcaças.
Tem sido noite extrema. Finos fios
Sulcando de sangue as esperanças.

Os ponteiros de anil. Nossas duas vidas
Devastadas, num lago de janeiros.

Se tivesse madeira e ilusões
Faria um barco e pensaria o arco-íris.
Se te pensasse, amigo, a Terra toda
Seria de saliva e de chegança.
Te moldaria numa carne de antes
Sem nome ou Paraíso.

Se me pensasses, Vida, que matéria
Que cores para minha possível sobrevida?

Extrema, toco-te o rosto. De ti me vem
À ponta dos meus dedos o ouro da volúpia
E o encantado glabro das avencas. De ti me vem
A noite tingida de matizes, flutuante
De mitos e de águas. Inaudita.
Extrema, toco-te a boca como quem precisa
Sustentar o fogo para a própria vida.
E húmido de cio, de inocência,
É à saudade de mim que me condenas.

Extrema, inomeada, toco-me a mim.
Antes, tão memória. E tão jovem agora».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT