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De volta de Ceuta
«(…) Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo da menina
dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos seus passados amores!
Passado já algum tempo
que os amores
De Almeno, por seu mal,
eram passados,
Porque nunca Amor cumpre
o que promette,
Entre uns verdes
ulmeiros apartado,
Regando por o campo as
brancas flores.
Em lagrimas cansadas se
derrete.
Quando a linda pastora,
que compete
Co monte em aspereza,
Co prado em gentileza.
Por quem o pastor triste
endoudecia,
Por a praia do Tejo
discorria
A lavar a beatilha e o
trançado.
O sol já consentia
Que saísse da sombra o
manso gado.
Já acordado daquelle pensamento,
Que tão desacordado
sempre o teve,
Viu por acerto o bem que
incerto tinha;
E porque, donde o amor a
mais se atreve,
Alli mais enfraquece o
entendimento,
Não lhe soube dizer o
que convinha.
(Egloga 3ª).
Pois se até ao invocar a
musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presente que o som
vem d’uma parte, mas que a pancada é em outra!
Em vós tenho Helicon,
tenho Pégaso ;
Em vós tenho Calliope e
Thalia
E as outras sete irmãs,
co fero Marte.
Em vós deixou Minerva
sua valia;
Em vós estão os sonhos
do Parnaso;
Das Pierides em vós se
encerra a arte.
Com qualquer pouca
parte,
Senhora, que me deis de ajuda
vossa.
Podeis fazer que eu
possa
Escurecer ao sol
resplandecente;
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder
vosso se espante
E que vossos louvores
sempre cante.
Podeis fazer que cresça
de hora em hora
O nome Lusitano, e faça
inveja
A Esmirna, que de Homero
se engrandece.
Podeis fazer também que
o mundo veja
Soar na ruda frauta o
que a sonora
Cithara Mantuana só
merece.
(Egloga 4.ª')
NOTA: Esta egloga
foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma
occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea.
Em Ceuta ainda não pensava nella, e se vê do soneto 267, manifestamente
contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que
também fazia versos:
Se a fortuna inquieta e
mal olhada,
Que a justa lei do ceu
comsigo infama,
A vida quieta, que ella
mais desama,
Me concedera, honesta e
repousada.
Pudera ser que a Musa,
alevantada
Com luz de mais ardente
e viva flamma,
Fizera ao Tejo, lá na
pátria cama,
Adormecer ao som da lyra
amada.
Porém, pois o destino
trabalhoso,
Que me escurece a Musa
fraca e lassa,
Louvor de tanto preço
não sustenta,
A vossa, de louvar-me
pouco escassa,
Outro sogeito busque
valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apresenta.
Forçado a desistir dos seus
altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes
tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se,
com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência.
Vós, que escuitais em rimas
derramado
Dos suspiros o som, que me
alentava
Na juvenil idade, quando
andava
Em outro em parte do que
sou mudado,
Sabei que busca só, do já
cantado
No tempo em que eu temia
ou esperava.
De quem o mal provou, que
eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o
meu cuidado.
Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeu ser fabula da
gente
(Do que comigo mesmo me envergonho),
Sirva de exemplo claro meu
tormento,
Com que todos conheçam claramente
Que quanto ao mundo apraz
é breve sonho.
(Soneto 101)
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
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