jdact
«(…) Os seis anos seguintes foram
passados em Barcelona, nestes espaços à volta da catedral onde tinha a certeza de
ajoelhar um dia, como noiva. E o dia chegou depressa, tão depressa como o
vento, abalando os troncos quase desnudados de Inverno. O sentido das palavras
do avô ganha hoje o peso todo, na fórmula de aceitação que teve de decorar.
Esta é a primeira prova. A outra será a viagem para Portugal, as bênçãos
nupciais depois do encontro com o infante Dinis, o noivo, já com três bastardos
e fama de grande amante. Não pode comparecer à cerimónia. É hoje representado
por homens notáveis do seu Conselho.
Aqui entregue a lembranças
matizadas com um pouco de inspiração, penso como é bom ser do povo, escolher
parceiro a contento. A mim e meu tio Juan nem sempre é fácil o pão, a mesa
farta. Só graças a Soledade e Ángel podemos ter uma abastança esporádica. São
mais os dias que passamos com duas refeições, como qualquer mendigo, e quase
todo o ano disfarçamos com trapos, os trapos esfiapados que nos cobrem. Mas
admiro este meu tio quando espaneja o apelido sonante, se é olhado com
desprezo, ufano de se deitar com quem quer, pelas razões que a mais ninguém
dizem respeito.
Aprendi com ele. Meu instinto
empurrou-me há dois anos para a cama de uma viúva ainda moça, gulosa da minha virgindade,
por sua vez sedenta de protecção de fêmea mais experiente. Contava eu com o que
tenho, e mais que se ocupasse de meus fatos rotos. Mas cerzir não é com ela.
Depois das sessões de aconchego e da sopa à beira do fogo, gosta de enroscar-se
nas mantas até dormir pesadamente. De modo que entre as visitas à viúva e a
fidelidade a meus tios, vou tecendo uma existência indecisa entre a infância e
a idade adulta.
A voz
atrás de mim, numa língua que não entendo bem, interrompe esta viagem no tempo.
É um prelado ainda novo, a compor as pregas de uma capa negra de bom corte. O olhar
intenso anima-lhe o rosto branco, rapado como a cabeça, enquanto martela a
mesma frase onde só identifico o nome de Ángel. O sorriso rasgado não me
inspira confiança. Não sei porquê, mas não inspira… Não entendo nada do que dizeis…
Pela terceira vez pronuncia
aquelas palavras, agora sem esconder a irritação, carregando no sobrenome
Cardeña. Pressinto perigo, a minha intuição a sugerir afastamento. E vou-me
dali incomodado, à procura de Juan. Não preciso mais que dois passos. Ao cimo
das escadas da entrada de serviço, conversa com o moço da estrebaria, agora a
polir as dobradiças de metal da porta aberta. Só interrompe com a rápida despedida
de meu tio, logo a descer os degraus dois a dois, já a combinar comigo a ida ao
largo do Anjo, em frente à muralha, para ver o cortejo que não há-de tardar.
Voltamos então a contornar a
catedral pela rua da Pietat. Paramos à entrada dos claustros, onde os gansos
brancos se espanejam num lago mal talhado, a rodear o marco onde vai nascer a
fonte de San Jordi, dizem, quando a nova catedral for construída. Ainda falta
meia hora para a cerimónia. Disposto a partilhar agora parte dos segredos
comigo, meu tio sugere um retiro curto ali mesmo, para dois dedos de conversa.
Puxamos então os animais para dentro da cerca. E sentados num canto resguardado
de olhares indígenas, com a cumplicidade muda das pedras, atrevo-me a pedir
respostas às perguntas que desde cedo rumino
Afinal
o que tinha a mensagem de tão urgente? Um pedido de Ángel ao infante Dinis,
feito de tal modo que só pode estar com medo. Nunca vi o tio Ángel com medo…
Mas o infante Dinis não vem, pois não? Não está previsto. Hoje dona Isabel
profere a fórmula de aceitação em presença dos procuradores do rei, depois as
bênçãos nupciais serão numa igreja de Portugal. Então, até que dona Isabel
chegue ao destino ainda leva tempo Mas a gente do infante Dinis deve partir em
seguida. A ela só compete decidir se entregará a mensagem por mão própria ou se
a fará seguir por eles. Mas qual o teor da mensagem…, pede o quê?
Aqui Juan baixa o tom de voz e
chega-se mais perto. A salvação dos
membros da ordem, ameaçados de espoliação de bens, talvez até de extinção. Quem
ameaça?
Só pode ser a corte de França, interessada nas
terras de Aragão. Por ser Filipe III casado com uma irmã de Pedro? Isso também,
mas há uma orientação seguida pelo rei de França que aponta para a união dos
reinos da Europa sob a mesma cabeça coroada. Não será ambição a mais? Pode ser,
mas tudo está encaminhado». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de
Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT