jdact
«(…) Em Castela, Filipe apoia os sucessores de Fernando de La Cerda; com o
acordo, há anos, para o próximo casamento do filho com a herdeira de
Navarra, terá o controlo desse reino como já tem o de Champagne; na Sicília
combate as hostes de Aragão. Que mais queres? E até aqui vem exercitar a
ousadia de tentar enfraquecer Pedro. Ora aí tens… Só não contava que tais
medidas lhe esvaziassem tanto os cofres, que precisa cobiçar tudo quanto é
tesouro, até as reservas do Templo. Então os movimentos todos não passam de
casos de rapina, afinal.
Assim
parece, e contudo falamos de um rei bem visto na Cristandade Qual quê? Os
monges guerreiros estão ao lado do pai de dona Isabel, tanto por aqui como nas
costas da Sicília, em oposição a Filipe, à Santa Sé e à causa de Carlos de
Anjou. Mas não está o papa. Será que Pedro não poderia responder melhor que Dinis
ao apelo da mensagem do tio Ángel? Não…, concentrado nas costas da Calábria,
nos portos da Itália, como havia de atender a outra frente de batalha, esta tão
mal definida? E o quase enforcamento de Ramon de Barbaré, há um mês, tem a ver
com tudo isto, tio Juan? Só pode ter. Atacá-lo foi uma forma de causar
instabilidade, às portas de um acontecimento tão importante como o casamento de
hoje. Mas ele é alguém especial? Ramon é descendente de cátaros acolhidos em
Aragão, gente que um dia apedrejou famílias dos antigos inquisidores de França que
aqui se deslocaram.
E daí?
Um cátaro é também Guilherme de Nogaret, próximo do rei de França, designado
para guarda selos do herdeiro, dizem. Descendente, mas muito contrário às
convicções religiosas dos avós. Um homem sem escrúpulos, capaz de tudo. Ramon
anunciava a cerimónia de hoje, a mando do mestre provincial. Quiseram ligar
passado e presente. Mas a vítima podia ser um de nós, ou até alguém próximo da
família real. Afinal o que se prevê, para o futuro?
Ángel
diz que, para garantir a sobrevivência da ordem, será inevitável a dispersão
dos membros. O certo é começar já a sondar que poderes lhes darão acolhimento. Mas
Dinis…, porquê ele? É sábio, com talento para a governação. Endireitou o batel
do reino encalhado à morte do pai. Talvez lhe seja favorável o retorno da ajuda
que vier a dar… Falais dos recursos materiais da ordem? Desses e de um
património de saberes, invejável para qualquer poder. De que mais falais, afinal?
Não to poderia dizer sem grande margem de erro. O tio Ángel corre perigo?
Corremos todos. Ele por ser monge da ordem, eu tu e
Soledad por sermos da linhagem de um nobre trovador catalão. E que mal tem ser
trovador? Um dia vais perceber… E Juan levanta-se, já a manhã avança
como onda espraiada na lisura do céu. A última coisa que queríamos ambos era perder
a entrada do cortejo real na basílica. Uns palmos à frente, em trote curto,
amanso o sangue há pouco agitado por um estranho temor. Não por meu tio. Afinal
não passa de um goliardo, só ameaça com umas cantigas de escárnio. Soledad também
não me dá cuidado. Ser aia de dona Constança, depois da infanta dona Isabel,
não lhe confere poder que afronte ninguém, de tudo sabendo um pouco. Eu não
estorvo. Mais não sou do que uma haste tenra, vou para onde o vento me levar». In
Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT