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e wikipedia
Da
Colónia ao Império
Onde se Esconde
o Desejo
«(…) Coube-lhes deixar o registo
do que era percebido e apreciado. Eis as impressões de um dos fundadores da
Austrália, de passagem pelo Rio de Janeiro, em 1787:
As mulheres, antes da idade de
casar, são magras, pálidas e delicadas. Depois de casadas, tornam-se robustas,
sem, contudo, perder a palidez, ou melhor, certa cor esverdeada. Elas têm os
dentes muito bonitos e melhor tratados do que a maioria das mulheres que habita
países quentes, onde o consumo de açúcar é elevado. Os seus olhos são negros e
vivos e elas sabem como ninguém utilizá-los para cativar os cavalheiros que
lhes agradam. Em geral elas são muito atraentes e suas maneiras livres
enriquecem suas graças naturais. Tanto os homens quanto as mulheres deixam
crescer prodigiosamente os seus cabelos negros: as damas em forma de grossas
tranças que não combinam com a delicadeza dos traços. Mas o hábito torna familiares
as mais estranhas modas. Estando um dia na casa de um rico particular do país, comentei
com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas e acrescentei
que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem, para
demonstrar que eu estava errado, chamou sua mulher, desfez o seu penteado e,
diante de meus olhos, puxou duas longas tranças que iam até ao chão.
Ofereci-me, em seguida, para rearranjá-los, o que foi aceito com simpatia.
No passado, os cabelos femininos,
ou as chamadas crinas, eram altamente valorizados, aliás, como o são hoje, em
nossa cultura. Mas quais critérios inspiravam erotismo e atracção física na
Idade Moderna? É bem verdade que as características físicas das nossas belas
estavam um tanto distantes das do modelo renascentista europeu de beleza e sensualidade.
Os grandes pintores do período, como Veronese, o veneziano, preferiam mulheres
de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola,
bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo
devia ser entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco, segundo um literato
francês. Como se dizia então, a construção tinha que ser de boa carnadura. A
metáfora servia para descrever ombros e peito forte, suporte para seios
redondos e costas em que não se visse um sinal de ossos. Até os dedos
afuselados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas, finalizadas
em pequenos arcos brancos. Jóias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas
e da tinta de jenipapo que recobriam nossas índias, reafirmavam o esplendor da
união entre elementos anatómicos e erotismo.
Mas o que se via dessa beleza?
Nada. Os olhares masculinos brilhavam ao passar uma mulher... Coberta de cima a
baixo! A imaginação sente-se singularmente excitada quando a gente vê essas
figuras semelhantes às freiras, envoltas totalmente num manto preto, das quais
mal se percebem o pezinho delicado e elegantemente calçado, um braço torneado e
furtivo, carregado de braceletes e um par de olhos, cujo vivo fulgor as rendas
não conseguem cobrir, movendo-se com leveza e graça sob os trajes pesados,
confessava um viajante estrangeiro. Era a velha fórmula: o que mais se esconde
mais se quer ver. O fascínio de um olhar camuflado ou do pezinho da misteriosa
criatura funcionava como uma isca para o desejo. Mulheres cobertas por véus aguçavam
a curiosidade e o apetite masculino. Não à toa, os poetas cantavam apenas o que
era possível enxergar, como Bocage: porém vendo sair d’entre o vestido/ um
lascivo pezinho torneado... Apesar da pobreza material que caracterizava a vida
diária no Brasil colónia, a preocupação feminina com a aparência não era
pequena. Mas vivia sob o controle da Igreja. A mulher, perigosa por sua beleza
e sexualidade, inspirava toda a sorte de preocupações dos pregadores católicos.
Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o a um
instrumento do pecado e das forças diabólicas que ele representava na teologia
cristã.
Quem
ama sua mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes
não será necessário perder-se a formosura para perder-se também o amor, porque
como o que se emprega nas perfeições e partes do corpo não é o verdadeiro amor,
se não apetite, e a nossa natureza é sempre inclinada a variedades, em muitos não
durará, admoestava um pregador resmungão». In Mary del Priore, Histórias íntimas,
Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São
Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
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