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De volta de Ceuta
«(…) Como se não ririam
dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que
o apodavam de rústico Magalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de ignorante,
de mau poeta, cujos versos não eram caballinos, antes pareciam de cavallo? Como
não deviam irritar o brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que
valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés, quando aggredia ou
era aggredido, como não deviam irritá-lo, digo, essas más línguas, peores
tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem su amada yedra
de si arrancada y en otro muro asida, essas amizades mais brandas que cera,
que se accendiam em ódios que disparavam lume que lhe deitava mais pingos na
fama que nos couros de um leitão? (escrita da Índia; estou convencido de que entre
as amisades de que falla o poeta se contava a de Andrade Caminha, o mal succedido
cortejador de dona Francisca de Aragão).
E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os boatos de que a
infanta tinha todo o empenho em não protrahir o seu casamento com o principe das
Astúrias.
Foi talvez por pôr a bocca
no mau successo dos amores de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado
dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na rua de Santo Antão, em
pleno dia, quando toda a Lisboa andava na rua para assistir á procissão do Corpo
de Deus (16 de Junho de 1552) [a narrativa do facto, contida na carta de
perdão, auctoriza, a meu ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do
poeta na briga travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados. A
immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar com aquelle,
mas não queria ser o provocador].
Como se sabe, o poeta esteve
preso até 7 de Março de 1553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte offendida
e por ir servir aquelle anno na Índia. E antes de findar o mês, talvez no dia
26, lá saía elle da amada terra, em que lhe ficava o magoado coração.
E tanto mais magoado, quanto
ás saudades da infanta accresciam também agora as da menina dos olhos verdes,
que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem tanto havia amado e esquecendo
profundos aggravos, não quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem
com as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de embarque.
Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de
piedade,
Emquanto houver no mundo
saudade,
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra
claridade,
Viu apartar-se de uma outra
vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ella só viu as lagrimas em
fio,
Que, de uns e de outros olhos
derivadas,
Juntando-se, formaram largo
rio.
Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o
fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas.
(Soneto 20).
E já em pleno mar, é ainda
esta doce imagem que o poeta evoca, para arrostar os perigos que o esperavam:
Por cima destas aguas, forte
e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas
derramaram
Aquelles claros olhos, pude
vir-me.
Já chegado era o fim de
despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada
gloriosa
Faz o vencido já desesperado.
Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte
irosa
A quem tem a seus pés, rendido
e atado?
Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos verdes que o
poeta ia pensando durante a longa e acidentada viagem para a Índia».
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.
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