domingo, 31 de maio de 2020

No 31. Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Aquella triste e leda madrugada, cheia toda de mágoa e de piedade, emquanto houver no mundo saudade, quero que seja sempre celebrada»

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De volta de Ceuta
«(…) Como se não ririam dos desastres amorosos do apaixonado poeta os seus inimigos litterarios, os que o apodavam de rústico Magalio, de pomposo Chérilo; os que o tratavam de ignorante, de mau poeta, cujos versos não eram caballinos, antes pareciam de cavallo? Como não deviam irritar o brioso e destemido mancebo, que tinha a consciência do que valia como poeta e que nunca deixou ver as solas dos pés, quando aggredia ou era aggredido, como não deviam irritá-lo, digo, essas más línguas, peores tenções, damnadas vontades, nascidas de pura inveja de verem su amada yedra de si arrancada y en otro muro asida, essas amizades mais brandas que cera, que se accendiam em ódios que disparavam lume que lhe deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão? (escrita da Índia; estou convencido de que entre as amisades de que falla o poeta se contava a de Andrade Caminha, o mal succedido cortejador de dona Francisca de Aragão).
E para acabar de lhe azedar a alma, não faltariam os boatos de que a infanta tinha todo o empenho em não protrahir o seu casamento com o principe das Astúrias.
Foi talvez por pôr a bocca no mau successo dos amores de Camões com a infanta, que Gonçalo Borges, encarregado dos arreios do paço, foi gravemente ferido pelo poeta, na rua de Santo Antão, em pleno dia, quando toda a Lisboa andava na rua para assistir á procissão do Corpo de Deus (16 de Junho de 1552) [a narrativa do facto, contida na carta de perdão, auctoriza, a meu ver, a conjectura de que não foi casual a intervenção do poeta na briga travada entre Gonçalo Borges e os dous cavalleiros mascarados. A immediata retirada destes faz suppôr que o poeta tinha contas a ajustar com aquelle, mas não queria ser o provocador].
Como se sabe, o poeta esteve preso até 7 de Março de 1553 e foi solto por lhe ter perdoado a parte offendida e por ir servir aquelle anno na Índia. E antes de findar o mês, talvez no dia 26, lá saía elle da amada terra, em que lhe ficava o magoado coração.
E tanto mais magoado, quanto ás saudades da infanta accresciam também agora as da menina dos olhos verdes, que, sinceramente compadecida da sorte d'aquelle a quem tanto havia amado e esquecendo profundos aggravos, não quis faltar ao amargurado poeta com o seu perdão nem com as sinceras lagrimas da despedida, na manhã do dia de embarque.

Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Emquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ella só, quando amena e marchetada
Saía, dando á terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ella só viu as lagrimas em fio,
Que, de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ella ouviu as palavras maguadas,
Que poderão tornar o fogo frio
E dar descanso ás almas condemnadas.

(Soneto 20).

E já em pleno mar, é ainda esta doce imagem que o poeta evoca, para arrostar os perigos que o esperavam:

Por cima destas aguas, forte e firme,
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantas derramaram
Aquelles claros olhos, pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram.
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com animo obstinado.
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em qual figura ou gesto desusado
Pôde já fazer medo a morte irosa
A quem tem a seus pés, rendido e atado?

Mas, como vamos ver, não era só na menina dos olhos verdes que o poeta ia pensando durante a longa e acidentada viagem para a Índia».
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT