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Primeiras manifestações teatrais: o arremedilho
«(…) É, de resto, com os jograis que melhor se patenteia a fluidez, a
indeterminação de fronteiras entre as diversas manifestações dramáticas medievais,
cujo sincretismo a obra de Gil Vicente (e, até, alguns dos seus autos
isoladamente considerados: pense-se nas Barcas, por exemplo, ou no Auto da Feira) de maneira
tão flagrante ilustra. A própria etimologia da palavra arremedilho
insinua que se trataria de uma representação elementar em que a declamação e a
mímica se combinavam para tornar mais atraente e persuasiva a fábula contada
pelos jograis ao seu auditório popular ou cortês: como que a iluminura animada
das novelas ou das canções épicas da Idade Média, na definição expressiva de
Oscar de Pratt. Remedadores,
com efeito, se chamavam no reinado de Afonso X de Castela (di-lo uma declaração
do trovador Guiraut Riquier, de 1275, que os aproximava dos contrafazedores
provençais), os jograis especializados na arte de imitar; e uma das Cantigas de Santa Maria, do
Rei Sábio, conta a história de um jogral que quis remedar como seja a imagem de
Santa Maria, e torceu-se-lhe a boca e o braço. Num dos versos dessa mesma cantiga
depara-se-nos o termo remedilho, que Menéndez Pidal define como sendo o espectáculo
que dava o remedador. Parece, assim, não haver dúvidas de que estamos perante
uma verdadeira manifestação dramática, embora incipiente e rudimentar; e tanto
que, em pleno século XVI, o autor da anónima Obra da Geração Humana (Gil Vicente?), na cena introdutória,
e Chiado (no Auto da Natural
Invenção) designam por arremed(i)ação uma modalidade cénica que, na
obra do último, se dá também como sinónimo de comédia, representação, auto ou
prática. Foi nos séculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinados de Afonso III
(1248-1279) e seu filho Dinis I (1279-1325), que a poesia jogralesca viveu
entre nós o período mais florescente. Apesar de o regimento da casa real, de
1250, proibir que houvesse mais de três jograis na corte ou jogralesas
(denominadas soldadeiras) que não viessem de passagem ou se demorassem mais de três
dias, a verdade é que em nenhuma outra época tão grande número de jograis e
trovadores deverá ter-se reunido na corte portuguesa, o que autoriza a concluir
que as representações de arremedilhos fossem, então, frequentes. Não era, de
certo, infundadamente que o jogral João Airas, de Santiago, numa das suas
cantigas, aludia às ricas e nobres Cortes que faz el-rei. (Convém esclarecer
que o trovador se distingue do jogral por uma condição social e um grau de
cultura mais elevados, e está para ele como, na antiguidade clássica, o aedo ou
rapsodo relativamente ao mimo e ao histrião. Mas esta distinção, que aliás
aparece glosada em várias cantigas de escárneo e mal-dizer, é por via de regra
mais teórica do que prática).
Abundam, aliás, nos Cancioneiros
dos séculos XIII (Ajuda) e XIV (Vaticana e Biblioteca Nacional) as composições
poéticas de esquema dialógico, ou tenções, que um breve tratado de
versificação, anexo ao último dos citados Cancioneiros, assim define: outras
cantigas fazem os trovadores que chamam tenções, porque são feitas por maneira
de razão que um haja contra outro, em que diga aquilo que por bem tiver na
prima cobra (isto é, copla) e o outro responda-lhe na outra dizendo o contrário.
Estas se podem fazer de amor, ou de amigo, ou de escárneo, ou de mal-dizer.
Poderiam multiplicar-se exemplos de tais composições, desde as cantigas de trovadores
e jograis como Pedro Meogo, Bernaldo Bonaval, Paio Gomes Charinho, Fernando
Esguio, Lourenço, o próprio rei Dinis I, que tomam a forma dum diálogo com o
namorado, a mãe, a amiga confidente, às polémicas em verso que aqueles entre si
travaram, com a questão do Guarecer por trovar em que intervieram o jogral
Lourenço, João Garcia Guilhade, João Aboim, João Soares Coelho e João Vasques.
A sua estrutura subsiste no Cancioneiro
Geral de Garcia Resende (a querela do Cuidar e Suspirar, o processo
de Vasco Abul em que interveio Gil Vicente, a porfia entre o conde de Vimioso e
Aires Teles sobre a questão de desejar e bem-querer) e nas éclogas de um Sá
Miranda, de um Bernardim Ribeiro ou de um Rodrigues Lobo; seria, no entanto,
excessivo qualificar, por essa razão apenas, de dramáticas tais composições». In
Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura
Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da
Livraria Bertrand, 1977.
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