Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) O crepúsculo era
um telão de mármore acinzentado no horizonte. Tive a impressão de ter ouvido um
estalo às minhas costas, na entrada da ruela. Virei-me assustado. Por um
instante, senti que alguém estava me seguindo. Mas não havia ninguém, apenas a
chuva metralhando as poças d’água no caminho. Enfiei-me pelo portão. A claridade
dos relâmpagos guiou meus passos até a casa. Os querubins da fonte me deram as boas-vindas.
Tremendo de frio, cheguei à porta da cozinha, nos fundos. Estava aberta.
Entrei. A casa estava completamente às escuras. Lembrei-me das palavras de
Germán sobre a ausência de eletricidade. Até então, não me tinha ocorrido que
ninguém me tinha convidado. Pela segunda vez, eu me enfiava naquela casa sem
pretexto algum. Pensei em partir, mas a tempestade uivava lá fora. Suspirei.
Minhas mãos doíam de frio e eu mal sentia as pontas dos dedos. Tossi como um
cachorro e senti o coração latejando nas têmporas. Minha roupa estava grudada
no corpo, gelada. Meu reino por uma toalha, pensei.
Marina?, chamei. O eco de minha
voz perdeu-se no casarão. Tomei consciência do manto de sombras que se estendia
ao meu redor. O clarão dos relâmpagos filtrando-se pelas janelas proporcionava
apenas uma rápida sensação de claridade, como o flash de uma máquina
fotográfica. Marina?, insisti. E Oscar... Timidamente, entrei na casa. Meus
sapatos empapados produziam um som viscoso ao andar. Parei quando cheguei no salão
onde tínhamos jantado na véspera. A mesa estava vazia e as cadeiras, desertas. Marina?
Germán? Não obtive resposta. Avistei um castiçal e uma caixa de fósforos em
cima de uma mesinha console. Meus dedos enrugados e insensíveis só conseguiram acender
a vela na quinta tentativa. Levantei a chama tremelicante. Uma claridade
fantasmagórica inundou a sala. Deslizei até o corredor onde tinha visto Marina e
seu pai desaparecerem no dia anterior. O corredor conduzia até outro salão,
igualmente coroado por um lustre de cristal. Suas contas brilhavam na penumbra
como carrosséis de diamantes. A casa era habitada por sombras oblíquas que a
tempestade projectava de fora através das vidraças. Velhos móveis e poltronas
dormiam sob lençóis brancos. Uma escada de mármore subia para o primeiro andar.
Fui até lá, sentindo-me um verdadeiro intruso. Dois olhos amarelos brilharam no
alto da escada. Ouvi um miado. Kafka. Suspirei aliviado. Um segundo depois, o gato
se retirou para as sombras. Parei e olhei ao redor. Meus passos tinham deixado
um rasto de pegadas sobre a poeira.
Tem alguém aí?, chamei novamente,
sem obter resposta. Imaginei aquele grande salão décadas atrás, vestido de
gala. Uma orquestra e dezenas de casais dançando. Agora, parecia o salão de um
navio afundado. As paredes estavam cobertas por quadros a óleo. Todos retratavam
a mesma mulher. Era a mesma que aparecia no quadro que vi na primeira noite em
que entrei naquela casa. A perfeição e a magia do traço e a luminosidade daquelas
pinturas eram quase sobrenaturais. Fiquei perguntando quem seria o artista. Mesmo
porque, era evidente que todos eles eram obra da mesma mão. Parecia que aquela
dama me vigiava de todos os lados. Não era difícil perceber a incrível semelhança
entre aquela mulher e Marina: os mesmos lábios sobre uma pele clara, quase transparente.
A mesma figura, esbelta e frágil como a de uma estatueta de porcelana. Os mesmos
olhos cor de cinza, tristes e sem fundo. Senti alguma coisa roçar meu tornozelo.
Kafka ronronava aos meus pés. Abaixei e acariciei a sua pelagem prateada. Onde
está sua dona, hein? Como resposta, ele miou melancolicamente. Não havia ninguém
ali. Ouvi o som da chuva batendo no telhado. Milhares de aranhas-de-água
corriam pelas calhas. Imaginei que Marina e Germán tinham saído por algum motivo
impossível de adivinhar. Em todo caso, não era da minha conta. Fiz um carinho
em Kafka e resolvi ir embora antes que retornassem». In Carlos Ruiz Zafón, Marina,
1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
Cortesia de PlanetaE/JDACT