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A
Letra Pitagórica
«(…) Outros muitos nobres ali se
encontravam: o duque de Bragança, Teodósio, e, com seu hábito de beneditino,
muito importante, seu irmão Fulgêncio; Rodrigo Melo, marquês de Ferreira e
conde de Tentúgal, primo de el-rei; Francisco Portugal, conde de Vimioso, vedor
da Fazenda e membro do conselho real..., e muitos mais cujos nomes nem eu nem
Diogo sabíamos. Quantas coisas algumas destas figuras evocavam! Rodrigo, era
sobrinho daquele duque de Bragança, Fernando, que el-rei João II havia mandado
degolar em Évora; por sua vez, Teodósio e Fulgêncio, eram filhos daqueloutro
duque de Bragança, dom Jaime, que andava ainda na memória de todos devido a
ter, por ciúmes infundados, apunhalado nos seus paços de Vila Viçosa sua
mulher. De Fulgêncio, se dizia que, apesar de frade, abade comendatário de São
Salvador de Travanca, prior de Santa Maria de Moreira, cónego regrante da
colegiada de Barcelos e prior comendatário de Santa Maria de Guimarães, a sua
condição de religioso não o impedira de ter um filho, que era frade algures...
Também era coisa muito de deleitar os olhos, Deus me perdoe!, a beleza das
donas e donzelas, esposas e filhas de tão subida fidalguia, ataviadas de sedas,
veludos e brocados, enfeitadas de riquíssimas jóias que rebrilhavam lampejando
finíssimas alfinetadas de luz ao mais pequeno movimento dos formosos colos e
cabeças.
A cerimónia prosseguia. O meu
olhar vagueava. Voltei a fixá-lo no ponto em que avistara Margarida e Elsa, já
lá não estavam. Compreendi a sua delicadeza e a partir daí passei a concentrar
o espírito no solene acto que se processava. De súbito, tive a impressão de que
havia olhos pousados em mim. Apresentávamo-nos, os ordinandos, vestidos muito
singelamente com calças inteiras, pretas e justas, e uma camisa branca sem
gola, prontos a envergar o hábito no momento apropriado, de maneira que era bem
visível o medalhão que me pendia do pescoço. Por instantes, não sei porquê,
tive receio de levantar os olhos, mas logo achando isso sem fundamento ergui-os
e encontrei muitos outros fixos em mim, sobretudo olhos femininos. Ocasião
houve em que o próprio rei me olhou, e o bispo, e o mestre de Santiago, e seu
filho, e outros nobres, e gente do povo. De entre tantos, que olhos seriam
esses que tiveram o poder de me atravessar o cérebro como se fossem uma coisa
concreta? Sentia que não era apenas o facto de dar nas vistas, já por causa do
medalhão, eu era o único com um tal objecto a
reverberar seu ouro no meu peito,
já pela compleição do meu corpo, as minhas feições e a cor do cabelo anelado:
alguma coisa mais que fendera e pairava no ar como um eflúvio indefinido. A
minha atenção, porém, foi desviada, pois a missa terminara e o bispo preparava-se
para proceder à cerimónia principal daquele dia, a prima tonsura, início da escada que levava ao
sacerdócio. Vestidos agora com a sotaina castanha de São Francisco, tendo sobre
o braço esquerdo uma sobrepeliz branca, cada um de nós, ao apelo do bispo, que
sentado a meio do altar nos chamava pelo nome, destacava-se e avançava, com um
círio aceso na mão direita, indo postar-se em semicírculo e ajoelhando nos
degraus. Irmão Álvaro de Santarém!, chamava o bispo. Álvaro dirigia-se para o
altar e ajoelhava junto do companheiro que havia sido convocado antes de si.
Diogo e eu éramos os últimos.
Irmão
Diogo da Purificação!, continuava o prelado e Diogo, na sua ânsia, já ia a caminho.
Irmão Pantaleão de Aveiro! Palpava-se na atmosfera um certo nervosismo, desde
que a longa cerimónia começara, monótona, que se traduzia no ruído das roupas
que roçam, de pigarros que se tossem, de lenços a assoarem, de pés que mudam,
impacientes, de posição. Atrás de mim, quando ajoelhei, ouvi um sussurro de
espanto, um murmúrio quase imperceptível: de Aveiro! Já o prelado, de pé,
entoava o salmo Conserva me,
Domine, quoniam speravi in te, que o coro prosseguia
cantando, e tomava das tesouras para cortar em forma de cruz os cabelos dos
tonsurandos, que no acto da tonsura murmuravam: Dorninus pars hereditatis
meae et calicis mei: tu es qui restitues hereditatem meam niihi. Caíam as
madeixas, negras, castanhas, no gomil de prata que o acólito segurava, e o
silêncio era absoluto quando os meus caracóis de ouro por sua vez tombaram.
Apesar de não sentir pena, considerava no meu íntimo não estar ainda
suficientemente desprendido do mundo. Lançou o bispo então a sobrepeliz aos
tonsurados, depois de dizer secundado pelo coro: Induite novum hominem qui
secundum Deum creatus est in justitia et sanctitate». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT