sábado, 16 de maio de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Irmão Pantaleão de Aveiro! Palpava-se na atmosfera um certo nervosismo, desde que a longa cerimónia começara, monótona, que se traduzia no ruído das roupas que roçam…»

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A Letra Pitagórica
«(…) Outros muitos nobres ali se encontravam: o duque de Bragança, Teodósio, e, com seu hábito de beneditino, muito importante, seu irmão Fulgêncio; Rodrigo Melo, marquês de Ferreira e conde de Tentúgal, primo de el-rei; Francisco Portugal, conde de Vimioso, vedor da Fazenda e membro do conselho real..., e muitos mais cujos nomes nem eu nem Diogo sabíamos. Quantas coisas algumas destas figuras evocavam! Rodrigo, era sobrinho daquele duque de Bragança, Fernando, que el-rei João II havia mandado degolar em Évora; por sua vez, Teodósio e Fulgêncio, eram filhos daqueloutro duque de Bragança, dom Jaime, que andava ainda na memória de todos devido a ter, por ciúmes infundados, apunhalado nos seus paços de Vila Viçosa sua mulher. De Fulgêncio, se dizia que, apesar de frade, abade comendatário de São Salvador de Travanca, prior de Santa Maria de Moreira, cónego regrante da colegiada de Barcelos e prior comendatário de Santa Maria de Guimarães, a sua condição de religioso não o impedira de ter um filho, que era frade algures... Também era coisa muito de deleitar os olhos, Deus me perdoe!, a beleza das donas e donzelas, esposas e filhas de tão subida fidalguia, ataviadas de sedas, veludos e brocados, enfeitadas de riquíssimas jóias que rebrilhavam lampejando finíssimas alfinetadas de luz ao mais pequeno movimento dos formosos colos e cabeças.
A cerimónia prosseguia. O meu olhar vagueava. Voltei a fixá-lo no ponto em que avistara Margarida e Elsa, já lá não estavam. Compreendi a sua delicadeza e a partir daí passei a concentrar o espírito no solene acto que se processava. De súbito, tive a impressão de que havia olhos pousados em mim. Apresentávamo-nos, os ordinandos, vestidos muito singelamente com calças inteiras, pretas e justas, e uma camisa branca sem gola, prontos a envergar o hábito no momento apropriado, de maneira que era bem visível o medalhão que me pendia do pescoço. Por instantes, não sei porquê, tive receio de levantar os olhos, mas logo achando isso sem fundamento ergui-os e encontrei muitos outros fixos em mim, sobretudo olhos femininos. Ocasião houve em que o próprio rei me olhou, e o bispo, e o mestre de Santiago, e seu filho, e outros nobres, e gente do povo. De entre tantos, que olhos seriam esses que tiveram o poder de me atravessar o cérebro como se fossem uma coisa concreta? Sentia que não era apenas o facto de dar nas vistas, já por causa do medalhão, eu era o único com um tal objecto a
reverberar seu ouro no meu peito, já pela compleição do meu corpo, as minhas feições e a cor do cabelo anelado: alguma coisa mais que fendera e pairava no ar como um eflúvio indefinido. A minha atenção, porém, foi desviada, pois a missa terminara e o bispo preparava-se para proceder à cerimónia principal daquele dia, a prima tonsura, início da escada que levava ao sacerdócio. Vestidos agora com a sotaina castanha de São Francisco, tendo sobre o braço esquerdo uma sobrepeliz branca, cada um de nós, ao apelo do bispo, que sentado a meio do altar nos chamava pelo nome, destacava-se e avançava, com um círio aceso na mão direita, indo postar-se em semicírculo e ajoelhando nos degraus. Irmão Álvaro de Santarém!, chamava o bispo. Álvaro dirigia-se para o altar e ajoelhava junto do companheiro que havia sido convocado antes de si. Diogo e eu éramos os últimos.
Irmão Diogo da Purificação!, continuava o prelado e Diogo, na sua ânsia, já ia a caminho. Irmão Pantaleão de Aveiro! Palpava-se na atmosfera um certo nervosismo, desde que a longa cerimónia começara, monótona, que se traduzia no ruído das roupas que roçam, de pigarros que se tossem, de lenços a assoarem, de pés que mudam, impacientes, de posição. Atrás de mim, quando ajoelhei, ouvi um sussurro de espanto, um murmúrio quase imperceptível: de Aveiro! Já o prelado, de pé, entoava o salmo Conserva me, Domine, quoniam speravi in te, que o coro prosseguia cantando, e tomava das tesouras para cortar em forma de cruz os cabelos dos tonsurandos, que no acto da tonsura murmuravam: Dorninus pars hereditatis meae et calicis mei: tu es qui restitues hereditatem meam niihi. Caíam as madeixas, negras, castanhas, no gomil de prata que o acólito segurava, e o silêncio era absoluto quando os meus caracóis de ouro por sua vez tombaram. Apesar de não sentir pena, considerava no meu íntimo não estar ainda suficientemente desprendido do mundo. Lançou o bispo então a sobrepeliz aos tonsurados, depois de dizer secundado pelo coro: Induite novum hominem qui secundum Deum creatus est in justitia et sanctitate». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT