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de wikipedia e jdact
«As
Farpas, nome metafórico, dado com o sentido e intenção de espicaçar a sociedade,
foram edições mensais, publicadas entre 1871 e 1882, numa revista fundada por
Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, quando tinham, respectivamente, 35 e 26 anos.
Foram iniciadas pelos no mesmo ano em que se realizou as chamadas Conferências
do Casino, em 1871, nas quais um grupo de jovens escritores e intelectuais
apresentaram o seu manifesto com pretensões de revolucionar a literatura e a
sociedade cultural portuguesa da época, com base nas filosofias realistas e
naturalistas do escritor francês, Gustave Flaubert. Foi a censura imposta,
pelas autoridades, às conferências, enquanto esta decorriam, que motivou, em
grande parte, o lançamento dessas publicações pelos dois jovens escritores. Decerto
inspiradas nas Les Guêpes (As Ferroadas), do francês Alphonse Karr, As
Farpas, sublinhadas com a legenda O País e a Sociedade Portuguesa -
constituem um painel jornalístico da sociedade de Portugal nos finais do século
XVIII, com artigos altamente críticos e irónicos a satirizar, com muito humor à
mistura, múltiplos sectores da sociedade da época, da política á religião, dos
costumes e hábitos, à mentalidade vigente. As Farpas constituem pois um marco
na literatura e na evolução cultural do país uma vez que se impuseram como um
novo e inovador conceito de fazer jornalismo, o jornalismo de ideias, de
crítica social e cultural, que hoje é corrente. Eça de Queirós, por razões
profissionais em que teria de se ausentar do país, tomou a decisão de abandonar
o projecto ao fim de um ano quando assumiu o cargo de embaixador em Cuba,
alegando não ter condições de observar o quotidiano português para o poder
analisar e criticar mensalmente. Ramalho Ortigão continuaria sozinho este
trabalho jornalístico até 1882. Em 1887 Ramalho decide publicar, em livro,
grande parte dos seus folhetins. Assim entre 1887 e 1890 são publicados, em 11
volumes, e repartidos por temas, As Farpas de Ramalho Ortigão,
tornando-se assim, também, na primeira obra literária feita a partir da
condensação de artigos jornalísticos, previamente publicados em jornal ou
revista, algo que hoje também é comum. Ramalho Ortigão exortou posteriormente
Eça de Queirós a fazer o mesmo e os seus artigos foram publicados, em 1890, num
livro intitulado Uma Campanha Alegre.
Nas
margens do Lima. Setembro de 1885
Quem nunca
veio a Viana, quem não atravessou a linda ponte do caminho-de-ferro, entre o
aterro de S. Bento e a risonha aldeia de Darque, tão célebre outrora pelas suas
faianças pombalinas; quem não percorreu a estrada litoral até Caminha, através
das povoações de Âncora, da Areosa e de Afife; quem não transitou a pé pelos
caminhos de uma e da outra margem do rio, por Meadela e Santa Marta, até ao
pontilhão do Portuzelo rodeado de casais, de moinhos de vento e de rochas em
que escachoa a água, límpida e desnevada, através da qual se veem trepidar e reluzir
as trutas; quem não foi e não veio, pela direita e pela esquerda da ribeira, de
Viana a Ponte do Lima e de Ponte do Lima a Viana; quem durante alguns dias não
viveu e não passeou nesta ridente e amorável região privilegiada das éclogas e
das pastorais, não conhece de Portugal a porção de céu e de solo mais
vibrantemente viva e alegre, mais luminosa e mais cantante.
Nesta
quadra do ano principalmente, na ocasião das colheitas, quando as ceifeiras, de
mangas arregaçadas, atravessam os campos, carregadas de feixes de canas
maduras; quando o milho começa a alourar as eiras, e ao longo das planícies ou
por detrás dos outeiros, nos pontos onde alvejam casas ou muros de quintas, se
ouve a cantiga das esfolhadas, o aspecto do campo ainda virente, inundado de
luz, tem o que quer que seja de uma apoteose bucólica, de um idílio rural, por
entre cujas estrofes o rio alastra mansamente a pacificação da água. A natureza
parece uma larga festa em toda a bacia do Lima, fechada ao sul pelo biombo de
montanhas que começa de leste em Lindoso, na fronteira espanhola, e termina a
oeste em Faro de Anha, sobre o porto de Viana. Dentro de toda esta zona não há
grandes proprietários, não há gente muito rica, e não há miséria.
Muitas
casas pequenas. Nem uma só casa em ruínas, como na Beira, como no Douro. Ao
longo das estradas, ou nos arruamentos contorcidos das pequenas aldeias, a
tenda com a caixa do correio à porta, os bambolins de velas de sebo pendentes
do tecto, cintilações amarelas, azuis e brancas de louça vidrada numa
prateleira ao fundo, as pequenas tabernas com os pães moles e enfarinhados e
pegados uns aos outros em cima do balcão, na padieira das portas, suspensa de
um braço de ferro, a tabuleta azul, Bom vinho e comer, o ferrador, o
tamanqueiro, o peneireiro, o cesteiro, o bombeiro, a tecedeira, a botica, tudo
tem um ar alegre, de camisa lavada, barba feita, carnação sadia, brunida ao
sol. Por detrás do cancelo do quinteiro, no mato fofo das enchidas, por baixo
da ramada, ao lado das mais humildes cabanas, vê-se a porca ruça esfoçando a estrumeira,
o galo branco cacarejando satisfeito, empoleirado na padiola, na escada de mão
encostada à parede do cortelho ou no caniço do carro; e o podengo amarelo, de
orelha bicuda, ladra da porta de casa ou de cima do muro, mostrando a quem
chega os dentes anavalhados e o grande rabo em ponto de interjeição.
Não há
adega, não há despensa, não há fogão de cozinha. A panela preta de barro de
Prado ferve solitária sob o testo no pequeno lar enfumarado, à fogueira de
cepas e de agulhas de pinheiro, entre os dois escabelos de castanho. Mas há
broa em todos os balaios à porta do forno, há toucinho ou há unto, pelo menos,
em todas as salgadeiras, há azeitonas no cântaro da salmoeira, há um ovo para
pôr a cada galinha choca, uma braçada de erva para cada boi, uma côdea para
cada cão, uma rasa de milho para cada fornada, uma estriga para cada roca, uma
leira para cada enxada.
A
propriedade brasileira, pintada de amarelo, com dois cães de faiança no portão
e as maçanetas de vidro nas varandas, puxa aqui mais raramente pelos olhos do
que nos subúrbios do Porto, de Braga e de Famalicão. O brasileiro do vale do
Lima é, em geral, um pequeno brasileiro, tão pequeno que quase não passa de um
rapaz que foi ao Brasil. A beleza da terra, a graça modesta dos costumes, a
simplicidade da vida, exercem aqui, mais do que em outra qualquer parte, esse
magnetismo nostálgico que leva o emigrado a repatriar-se o mais depressa que
pode. Desde que ganhou com que comprar o campo que tem de olho, com que
levantar um andar à choupana paterna, com que meter mais duas vacas no eido, e
com que custear o luxo de um garrano para vir de tilbury à feira da
Agonia e de um mingacho para pescar no rio, o emigrado de Entre Minho e Lima
regressa modestamente, em segunda classe da Royal Mail, ao ninho natal.
Daqui, um
tranquilizador equilíbrio económico, administrativo e moral: a vida barata e o
voto barato. Não vale a pena para os homens de negociar em eleições com os
regedores, e vale a pena para as raparigas de continuarem a fiar, a tecer, a
fazer renda e a fazer manteiga, porque não há namorados com posses para lhes
darem dados os brincos e os cordões de ouro. Em compensação, é excessivamente
moderado o número de cães de louça, dos campanários novos, dos relógios de
torre e dos comendadores da Conceição. As igrejas matrizes conservam o seu
primitivo ar antigo, sombrio e musgoso, numa humidade de claustro ou de azenha».
In
Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, As Farpas, 1878, Crónica Mensal, Tipographia
Universal, Principia Editora, 2003-2005, ISBN 979-972-881-840-0.
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