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A porta do mundo
«(…) Porquê Pantaleão?, perguntava.
Disse-lho, contando com muito pormenor a história da vinda para Portugal das
relíquias do santo mártir de Nícomédia e mostrando-lhe o medalhão que trazia ao
pescoço. O caminho estreitava, tornando-se um apertado carreiro entre arbustos
agrestes e medronheiros emaranhados, de silvados. Seguimos em fila por algum
tempo, distanciados. E porquê de
Aveiro?, perguntou, erguendo a voz e virando-se para trás. Julgo
que nasci lá, respondi, quase gritando. Julgais? Não tendes a certeza? Por mais
estranho que pareça, é essa a verdade. Alguém mo inculcou... A ceia fez-me
sentar à sua mesa. Far-lhe-ia companhia. Como via, não tinha ninguém. Era um
solteirão impenitente, por mais que el-rei insistisse com ele para que tomasse
estado. Mas que queriam?, interrogava com ar alheado, como se falasse só para
si. Não se modificava de um momento para o outro o coração de um homem!
Senti-lhe a mágoa na voz e pensei
para comigo que aquela alma ainda estava muito ferida da paixão que a
avassalara. E vós que achais, frei Pantaleão?, inquiria. Achais que deva casar?
Quem era eu para dar conselhos a sua senhoria?, respondi. E demais em assunto
de tanta monta!... Mas ele insistia: considerasse-o um amigo que precisava da
minha ajuda, dizia, sorrindo pela primeira vez. Não se negava o auxílio a um
amigo, não era verdade? É muita bondade de vossa senhoria, exclamei e, de
repente, resolvi sair-me do embaraço com uma das minhas gaiatices: se Sua
Senhoria tivesse ali à mão umas barbas postiças de ancião, então eu poderia
dar-lhe um conselho a preceito. Riu-se com agrado e, enquanto me enchia a taça
do bom vinho da sua quinta, respondeu: não tenho, não. Mas a vossa imaginação e
boa vontade que as supra. Fazei de conta e venha embora essa resposta: devo
casar-me ou não? Pigarreei a afinar a voz, compus um ar muito circunspecto e
respondi solenemente em verso: grande
prole deve ter casa de tanta valia... Para tal então casar deve vossa senhoria.
Riu-se a bom rir com a minha
saída. Que o punha bem disposto. Havia muito tempo que não sabia o que era rir.
Era curioso que a minha resposta, tirante o ser em redondilha, era igual à de
el-rei. Agradecia-me do coração. Para si eu era maior autoridade que sua
alteza. Cria que não lhe restava senão seguir o meu conselho. Que sejais muito
feliz, senhor!, respondi com seriedade. Rezasse por ele!, murmurou comovido. No
dia seguinte assistiu concentrado à minha missa, acompanhando as orações pelo
seu livro de horas, de linda capa com dizeres dourados e no texto muito
formosas iluminuras. A comunhão veio ajoelhar-se no primeiro degrau do altar e,
quando eu lhe cheguei aos lábios a sagrada hóstia, notei que uma lágrima se lhe
desprendeu do canto da pálpebra e se foi esconder por entre a barba loura.
Recordei a história que tinha ouvido às lavadeiras e compreendi a sua dor.
Acabada a missa, preparava-me para seguir caminho de Lisboa, mas sua senhoria
já havia dado ordens para que dois dos seus criados me tivessem um cavalo
aparelhado e me escoltassem até Almada, onde deveria tomar o barco para
atravessar o rio. Deu-me um apertado abraço de despedida e ofereceu-me um
exemplar da sua Paixão de Cristo, que
escrevera e acabara de sair a lume. Insistiu comigo que o visitasse muitas
vezes e, sem eu o saber, havia mandado pôr no meu bornal uma bolsa cheia de
bons reais de ouro, esquecendo-se de que eu era franciscano.
Deslumbramento
à vista do Tejo! O rio coalhado de mil embarcações de toda a sorte, naus,
caravelas, galeões, barcas, barinéis, algumas delas engalanadas pelas enxárcias
de bandeiras multicolores! Ao fundo o casario da cidade que galgara já e
alastrara para fora das muralhas fernandinas. Nunca, como então, senti quanto
Lisboa era o porto do mundo e logo ali tomei a resolução de me aproveitar da
minha estada em Enxobregas para perscrutar miudamente a actividade da grande
urbe. Durante a travessia, apercebi-me de que até nas coisas mínimas se notava
que a azáfama se media à escala do orbe da Terra e não já do minúsculo ponto
que era a nação. Tais quilhas haviam sulcado águas de mares longínquos, traziam
os marinheiros a pele tisnada por outros sóis e nos olhos as imagens de
paisagens exóticas, nos ouvidos sons de outras algaravias, nas mãos a sensação
de apertar mãos de cores diferentes, nos espíritos o universalismo dos horizontes
rasgados pelo conhecimento de outros costumes, outras formas de pensar, outras
crenças e a correspondente tolerância. (E os homens, os carrascos da Inquisição
[maldita]?, lancetava-me
o espírito). Chegavam naus vindas das Índias, carregando a bordo riquezas nunca
vistas, de espantar as gentes; de partida, provia-se uma armada de biscoito e
conserva, como para dar a volta ao mundo. O pequeno batel em que eu seguia
coleava por entre as embarcações de alto bordo ali ancoradas. Provindas das
mais variadas nações e terras, da Flandres, da Inglaterra, da França, de
Veneza, de Gênova, de Milão, de Espanha, além das nossas próprias, chegadas das
Índias, todas elas se apresentam garridas e louçãs em suas cores e vernizes,
vaidosamente ostentando na popa o nome próprio. Era sobretudo o nome que lhes
dava uma personalidade tão forte que na minha imaginação me pus a figurar se
elas falassem -e não me admiraria nada, o que diriam. Pôr-se-iam a contar as
viagens feitas, os perigos passados, as maravilhosas baías, angras e enseadas
em que descansaram, os estranhíssimos fenómenos presenciados, os medos e os
sustos, as alegrias e tristezas, as tempestades, os naufrágios iminentes, o
fogo a bordo, as tripulações amotinadas, as abordagens de corsários... Chegavam
até mim canções lentas de marinheiros em modorra ou as suas vozes em estrídulas
altercações jogando as cartas, mas, sobrelevando-as, era a voz das embarcações
que eu interiormente ia escutando, o que se me facilitava por ser taciturno e
lacónico o meu remeiro. Subia-me o olhar meticuloso pelo pesado leme de uma nau
que contornávamos, anotava as junturas calafetadas das tábuas curvas do costado
e ia ler-lhe, lá bem no alto, o nome em letras góticas muito bem recortadas no
seu vermelho sobre fundo azul e debruadas de amarelo, Bruges. Era holandesa» In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT