terça-feira, 5 de maio de 2020

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «… que em poucos minutos se atropela, numa luta corpo a corpo por uma cabecinha de gamba, enchendo o prato como se nunca mais, nos próximos dez anos, pudesse voltar a provar tais iguarias!»

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Durante alguns minutos, à volta da mesa ninguém piou. O pintor Afonso e o seu Raulzito digeriam a afronta, trincando as gambinhas com raiva, e dona Laurentina e dona Natália mastigavam contentes, orgulhosas da sua pequena vitória. Foi então que o professor Bernardino, talvez para quebrar o gelo e depois de limpar os bigodes com o guardanapo, levantou o copo de vinho branco, Quinta de Camarate, e proclamou: um brinde!
Inês e Francisco levaram as mãos aos copos, aliviados pelo fim da tensão. O mesmo fez a mulher do professor Bernardino. Quanto ao pintor Afonso, não reagiu, amuado, sendo imitado pelo solidário namorado. Com um sorriso trocista, mas sem pegar no copo, Laurentina perguntou: e brindamos a quê? Ao silicone ou às estátuas? O professor Bernardino retribuiu o sorriso e explicou: aos tubarões, sem os quais não existiria polémica no mundo! João Pedro, cujo desconforto era visível, não levantou o copo. E, já agora, um brinde às gambas, sem as quais não teríamos assistido a outro espectáculo único..., acrescentou o professor, provocando o regresso dos sorrisos às caras do pintor e do seu Raulzito.
Uns vinte minutos antes, o professor Bernardino desenvolvera a teoria do buffet etíope. Segundo ele, em todos os casamentos, a grande maioria dos portugueses comportava-se como etíopes esfomeados rodeando os camiões da ajuda humanitária. Atacam com fúria o buffet! Vejam por exemplo as gambas. Estão ali dispostas com beleza, como uma monumental pinha, um ex-líbris da estética alimentar, e são atacadas por uma turba de gente, bem vestida mas esfomeada, que em poucos minutos se atropela, numa luta corpo a corpo por uma cabecinha de gamba, enchendo o prato como se nunca mais, nos próximos dez anos, pudesse voltar a provar tais iguarias! Alguns dos presentes não tinham ouvido a sua tese, havia sido o caso de dona Laurentina e de dona Natália, na altura a empilharem gambas no prato, não compreendendo o motivo do último brinde.
Prefere então o tubarão ao camarão?, perguntou Laurentina, fina de espírito e desconfiada. Prefiro, disse o professor Bernardino. Sou solidário com tudo o que tenha tamanho em excesso... Ouviu-se uma voz, quase um murmúrio: Laurentina, isto são gambas... Houve risos à volta da mesa. O pintor Afonso, aliviando o seu amuo, perguntou: mas conhece este tubarão? Para desagrado de João Pedro, a conversa regressava à figura do dr. Marcos Portugal. O professor Bernardino olhou na direcção do famoso advogado e disse: só dos jornais e das revistas. Divertida, Inês colocou João Pedro no centro das atenções: o único que o conhece bem é o João Pedro. A mesa esperou um esclarecimento. Mas João Pedro fez-se desentendido. O João Pedro é advogado no escritório do doutor Marcos Portugal, trabalha para ele..., insistiu Inês.
Em redor, olhares de desaprovação. Pela amostra, o dr. Marcos Portugal não ganharia concursos de popularidade. Tinha fama de trauliteiro e ambicioso, capaz de vender a própria mãe. Mas nessa apreciação social existia muita ambiguidade e má consciência, pois o dr. Marcos Portugal era um especialista em off-shores, uma espécie de guru nacional da fuga ao fisco. Muitos dos que em público o criticavam, usavam depois os seus serviços em privado, para melhor acautelarem as suas fortunas da gula das Finanças. Anda então a treinar-se para tubarão?, provocou o professor Bernardino». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT