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A bissexualidade pode ser detectada noutras divindades: Manfred Lurker assinala
a existência de uma representação de Mut em que a deusa tebana, esposa de Amon,
surge com um tumefacto falo, e Imseti, um dos filhos de Hórus, ligado à protecção
do fígado do defunto (os outros filhos de Hórus guardavam as restantes
vísceras), aparece-nos como um ser andrógino, representado com a pele clara
que, segundo os cânones da arte pictórica egípcia, se usava para identificar as
personagens femininas. Também Hapi, personificação do Nilo, se apresentava como
hermafrodita, numa pesada figura algo masculinizada exibindo alentados seios femininos
que o vocacionavam para a fertilidade úbere. Como assinala John Baines, as típicas
figuras de fecundidade, geralmente de conotação nilótica, encontram-se representadas
na escrita hieroglífica e detectam-se praticamente em todos os sítios e em
vários suportes materiais: templos, capelas funerárias, túmulos, estelas, papiros,
amuletos, escaravelhos e mobiliário. Tais imagens atestam-se desde a IV dinastia
até à Época Greco-romana.
Exaltando as formas da maternidade,
também Amen-hotep IV (ou Amenófis IV, na versão grega), tornado Akhenaton na luta
contra o poderoso clero amoniano, se fará representar, escandalosamente, em pose
andrógina, reunindo no impressionante colossalismo assexuado os pólos masculino
e feminino. E tudo isto em Karnak, em pleno domínio de Amon, o demiurgo, o rei dos
deuses, para uma nítida afirmação do seu poder criador.
Bissexual era igualmente um primitivo
deus gerador como Min, senhor de procriação, protector das pistas do deserto que
conduziam ao mar Vermelho, venerado em Akhmim e Coptos. Com o seu falo permanentemente
empunhado, é uma divindade copuladora, princípio de fecundação dos animais e dos
humanos cujos vestígios remontam ao período pró-dinástico. Na sua característica
representação estaticamente itifálica, o netjer da fertilidade e fecundidade
aparece com frequência nos templos de Lucsor e Karnak, por vezes, em apelativo
sincretismo, identificado com Amon (Amon-Min). Enquanto em Heliópolis (Iunu) o demiurgo
Atum dava o melhor do seu esforço para, ao masturbar-se, ejacu… Chu e Tefnut, lá
mais a sul, precisamente naquela zona considerada como a histórica fronteira meridional
do Egipto, o ceramista Khnum, divindade de Elefantina (Abu, hoje Assuão), girava
o seu torno de oleiro e ia moldando os seres, deuses e homens, no barro da terra,
trabalhando a dobrar, pois esculpia os seres humanos e divinos e os respectivos
kau. Também ele estava só quando, com algum esforço e não menor prazer, através
do nobre gesto do trabalho criou a humanidade ao torno, simbolizando dessa forma
a sua força criadora e justificando o epíteto de pai dos pais e mãe das mães, o
qual, de resto, era igualmente aplicado a outras divindades demiúrgicas, como o
viril Amon, de quem se dizia: comportou-se como macho com o que tinha empunhado,
quando ainda não havia vulva. Já Atum, muito antes. Na preponderante Heliópolis,
havia feito o mesmo». In Luís Manuel Araújo, Estudos sobre
Erotismo no Antigo Egipto, Edições Colibri, 2000, ISBN 972-828-805-0.
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