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O mistério do bilhete de identidade
«(…) Intrigado com este
surpreendente resultado, o prof. Picado teve então uma ideia luminosa.
Constatando que o dígito de controlo do seu BI/CC era 0, retirou o número do
BI da lista e pôs o programa a correr. Bingo: em 5 minutos tinha a
resposta. O algoritmo de detecção de erros do Ministério da Justiça é igual ao
do ISBN, sendo a ponderação feita pela ordem inversa: o dígito de controlo tem
peso 1, o dígito mais à direita do número do BI/CC tem peso 2, o seguinte peso
3, etc. Faça o leitor a experiência com o seu número do BI/CC. Se fizer a soma
correspondente, o resultado terá de ser múltiplo de 11.
Nesta altura, cerca de 1 / 11 dos
leitores e cerca de 50% daqueles cujo dígito de controlo é 0 estarão a pensar
que estou a enganá-los. É que, afinal, fizeram as contas e obtiveram um número
que não é divisível por 11. Pelo contrário: é um múltiplo de 11 mais 1! E,
afinal, por que teve o prof. Picado de retirar o seu número do BI da lista para
descobrir o algoritmo de detecção?
A resposta a estas perguntas é
apenas uma e completamente patética. Como se disse atrás, no ISBN (e no BI/CC)
o dígito de controlo tem de estar entre 0 e 10 para que se possa assegurar
resto 0 ao dividir por 11. É essa a razão de ser do carácter alfanumérico X,
que vale 10, no dígito de controlo do ISBN. A escolha do carácter X para
representar 10 foi feita pelas razões mais prosaicas: no sistema de numeração romano,
como todos sabem, a letra X representava o número 10. Ora, muito provavelmente,
alguma mente burocrática da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado ou do
Ministério da Justiça deve ter achado muito desagradável que alguém visse um X escrito à frente do seu número de BI,
enquanto outras pessoas tinham apenas um algarismo. Talvez pudesse ser
considerado politicamente incorrecto..., ou a pessoa pudesse pensar que isso
teria um significado estranho..., cadastro criminal? Ficha no SIS? Suspeito de
actividades ilícitas?
Para abreviar: alguém
responsável, na sua reconfortante ignorância matemática sobre códigos, teve a
brilhante ideia de substituir o dígito de controlo X, quando ocorresse, por 0.
Ou seja, quando 0 ocorre como dígito de controlo, pode ter, na realidade, dois
valores: 0 ou 10! Ou seja, em metade dos casos em que ocorre o 0 (como no caso
do prof. Picado) esse dígito está errado. Ou seja, o Arquivo de
Identificação emite um BI cujo número, se controlado pelo seu algoritmo, está errado.
E esta situação ridícula afecta 9% dos portugueses! Para dar um exemplo,
na capa deste livro figuram dois bilhetes de identidade cujos números são
exactamente os que seriam fornecidos pelo Arquivo de Identificação, incluindo o
dígito de controlo. Num deles o zero é genuíno; no outro é falso. O leitor pode
divertir-se a verificar qual é qual.
A ignorância pode ficar muito
cara. Neste caso, custou a inoperância do sistema de detecção de erros que se
pretendia implementar! Como o leitor deve saber, ninguém usa o dígito de
controle do BI/CC.
Alguma vez lho exigiram? E
repare-se que teria sido muito fácil não cometer esta barbaridade: bastava, por
exemplo, adoptar como dígito de controlo sempre uma letra, digamos, as 11
primeiras letras do alfabeto, A a L... E haveria outras soluções
matematicamente correctas, mas mais profundas. O prof. Picado mostra como, a
partir da teoria de grupos elementar, usando o grupo diedral D5
se podem construir sistemas de detecção de erros (diferentes dos sistemas
modulares e mesmo melhores do que eles) que permitem usar apenas os algarismos
0 a 9 e com eficiência de 100%. O Bundesbank, por exemplo, já utiliza um deles.
Em Novembro de 1999, o prof. Picado escreveu para o Ministério da Justiça (que
tutela a emissão dos BI) expondo a situação e a sua solução. Até hoje ainda não
obteve resposta. Há pouco tempo, o prof. Picado foi renovar o seu BI. Na página
de instruções do impresso, o ponto 2 afirma se já tem BI, indique o respectivo
número, incluindo o dígito mais à direita (chamado
dígito de controlo e que serve para verificar se a ordem dos algarismos
está correcta). Quando entregou os documentos, disse com toda a razão à funcionária que o atendeu: sabe, isto
no meu caso não funciona. A funcionária nada disse, dirigiu-lhe um olhar
estranho e limitou-se a atender e a tentar livrar-se o mais rapidamente
possível daquele utente tão especial...» In
Jorge Buescu, O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, 2001, Colecção
Ciência Aberta, Gradiva, 2005, ISBN 972-662-792-3.
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