Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Nem por isso, todavia,
sosseguei inteiramente. O desafio dos meus olhos era o medo de todo o meu corpo
alerta, de um terror recurvo à escuta. (Falo agora à memória destes últimos
vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida além desse pavor,
que outra voz mensageira lhe clamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim).
No grupo, o seminarista mais velho esmagava agora os caloiros com o terrorismo da
sua experiência: vocês vão ver o senhor padre Lino a Latim. Cada erro nas
declinações, quatro palmatoadas. Que são declinações?, perguntei. Você logo
aprende. Só casos são seis. Que são casos? Você logo vê. Nominativo, genitivo,
e por aí fora. Logo sabe o que é bom. Apesar de tudo, com a segurança daquele
moço a cobrir-nos de protecção, eu sentia-me quase bem. Esquecera a minha
aldeia, a serra, o adeus do Calhau. Abri o farnel e comi. Nunca mais na minha
vida eu comi com tanto gosto, como se naquele desdobrar de notícias e paisagens
novas tudo em mim estivesse comendo comigo. O meu corpo colava-se avidamente ao
mundo novo, injectado de sangue ardente à mínima sensação. E assim, era como se
eu estivesse nascendo outra vez... A certa altura, porém, quando já não pensava
em reforços para as nossas hostes, entrou um destacamento de mais quatro fatos
pretos. Todos crescidos. Um vendaval de clamores varreu a carruagem de lés-a-lés.
Olhei os magalas e vi-os, já conformados, falando no limite da sua curta importância,
apontando com o dedo ocasionais curiosidades da paisagem que rolava.
Definitivamente, sentámo-nos para dominar à minha roda, cada um dos
seminaristas tentava provar o interesse das suas férias. Passámos à identificação
individual, para nos sentirmos, de uma vez para sempre, camaradas.
E você, como se chama?,
perguntaram-me. António Santos Lopes. Um bafo maligno de vergonha subiu-me logo
do ventre, no estúpido receio de que todos percebessem que este nome, só usado
nas cerimónias da lei, me ficava largo como um fato de esmola. Mas eis que um
seminarista dos mais antigos meteu subitamente um dedo à memória e varejou
qualquer recordação esquecida: António Lopes? António Santos Lopes. Ergueu os
braços triunfantes: então é o Borralho! Era. Era o Borralho. Não quis saber
como é que a minha sorte me viera apanhar ao comboio, e sofri em silêncio.
Durante os primeiros meses de seminário, a lei do meu nome clamou ainda contra
a injúria. Inútil. A lei acabou por se dar por vencida e nas conversas
clandestinas, quando me queriam ofender, fiquei Borralho por força. Decerto,
esse nome não é de modo algum ofensivo, até porque é vulgar. Mas ofendia-me a
mim, como dói a toda a gente o nome que lhe não pertence, como doeria a imposição
de uma pessoa que se não é. Porque o nome também é a nossa pessoa.
Reparei então que um dos quatro
da última leva mal abrira ainda a boca. Taciturno, como se remoesse o projecto
de um crime, com dois chapéus na cabeça, o velho encaixado no novo para o
poupar, ele olhava duramente e fixamente a ideia do seu rancor. De tez coriácea
de um filho da gleba, as mãos grossas nos joelhos, rude, possante, pensava
tenazmente, perdido de nós. Porque não falava? Ó Gama, tu não falas?, perguntou
um dos mais velhos, pensando comigo. O Gama. Nunca mais o esqueceria desde essa
manhã de 7 de Outubro, às dez horas, sexta-feira. E pela vida fora, sempre que
penso no Seminário, ou sonho com ele (porque sonho muitas vezes), é a imagem do
Gama que me enche o sonho e o pensar, para lhes dar algum sentido. Perdeste a
fala?, insistia o outro. Gama não falava. Direito no encosto, tinha só aquela máscara
valente de uma vingança reflectida. Por terem chegado a qualquer conclusão,
habituados, decerto, a entenderem-se por sombras, alguns seminaristas
entreolharam-se sabidamente, apertando os lábios na suspeita de qualquer mal
irremediável». In Vergílio Ferreira, Manhã Submersa, 1954, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-740-0.
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