terça-feira, 19 de maio de 2020

Eu e as Mulheres da Minha Vida. Tiago Rebelo. «Não? Não. Ela não estava a facilitar-lhe a vida. Era para aprender a estar calado. Quer dizer, você é bonita, simpática... Sorriu, a pensar, que idiota, meu Deus»

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O Factor Bellucci
«(…) Cátia olhou em redor. Não havia mesas vagas. Ele observou-a, esperançado. Os olhos dela cruzaram-se com os de Zé. Acenou-lhe, da porta, e Zé fez-lhe sinal para que se juntasse a ele. Cátia hesitou. Vem para aqui, vem para aqui, vem para aqui... Ela decidiu-se e foi ao seu encontro. Yes!, exultou, como quem marca um ponto. Olá, Figueiredo, cumprimentou-o, fazendo uma boquinha queridinha que lhe derreteu o coração. Será que se importa de oferecer um lugarzinho a esta pobre esfomeada sem mesa? Se me importo?, pensou, eu até pagava para te sentares aqui. É claro que não!, disse, erguendo-se ligeiramente da cadeira, talvez um pouco depressa de mais, apontando para a que estava livre. Sente-se, Cátia. Ai, que bom, obrigada, é tão difícil arranjar um lugar a esta hora. Veio sozinha?, perguntou. E pensou: não, Zé, veio com o amigo invisível. Parece que és estúpido. Foi o que lhe saiu. Paciência. Vim, confirmou Cátia. Não arranjei ninguém para vir comigo. Não?, estranhou. Não, sorriu. Porquê? Por nada, quero dizer, há tanta gente... Não somos assim tantos, no meu departamento. Pois, abanou a cabeça, pois não. E eu fiquei a acabar uma coisa, quando dei por mim, já não estava lá ninguém. Fez-se um silêncio. Zé teve vontade de lhe perguntar como é que uma rapariga como ela, inteligente, linda de morrer, umas pernas compridas que não podiam ser reais, acabava enfiada num gabinete de um banco? Como é que ela não era manequim, estrela de cinema ou..., hospedeira? Mas isso soou-lhe a conversa de engate, num bar, talvez, à uma e meia da manhã e agora era uma e meia da tarde e estavam numa pastelaria. Além de que lhe pareceu que a conversa da treta não seria propriamente a melhor estratégia para a cativar, fosse a que hora fosse. Veio o empregado, graças a Deus, e o assunto mudou para a sopa. Está óptima, recomendou Zé. Peça à vontade. Pode ser, concedeu ela, mas não muito quente.
O empregado foi-se. Novo silêncio, e Zé a começar a ficar embaraçado. Que gaita, ela devia achá-lo um idiota chapado. Tamborilou os dedos nos lábios, ao mesmo tempo que pensava desesperadamente em qualquer coisa inteligente para lhe dizer. Do que ele gostava mesmo era que o cretino do Pestana aparecesse ali agora e o visse na companhia de Cátia. Caíam-lhe os tomates ao chão, pensou. O que é que está a pensar, Figueiredo?, perguntou Cátia, interrompendo-lhe o devaneio. Hã, eu? Nada de especial. Ah, é que estava com um ar tão concentrado. Estava na Lua, não estava?, sorriu, sem graça. Parecia. Pois, não, estava a pensar que..., como é que você não é casada? Nem podia acreditar que tivesse dito aquilo. Ela abriu muito os olhos e soltou uma risadinha: porquê?! Porque..., porque, sei lá, porque uma rapariga como você não deve ter falta de pretendentes. Não? Não. Ela não estava a facilitar-lhe a vida. Era para aprender a estar calado. Quer dizer, você é bonita, simpática... Sorriu, a pensar, que idiota, meu Deus.
Que simpático. Não, a sério, não estou com certeza a dar-lhe nenhuma novidade. É sempre bom ouvir essas coisas. Mas, olhe, vou dizer-lhe um segredo, inclinou-se um pouco para a frente. Zé fez o mesmo. Uma sopa não muito quente e uma água natural sem gás — interrompeu o empregado, colocando as coisas na mesa. Obrigada, agradeceu ela, endireitando-se na cadeira enquanto o homem a servia. Como eu estava a dizer, voltou a inclinar-se para a frente, logo que o empregado se retirou, em primeiro lugar não há muitos homens realmente interessados em casar. Não?, estranhou Zé. Não, confirmou. Normalmente, estão mais interessados numa mulher só para o que é que é. Uau!, pensou ele, a conversa está a aquecer. Em segundo lugar, continuou Cátia, isto de ser bonita não é tão fácil como se julga. A maior parte dos homens sente-se intimidada e nem se aproxima. A sério?, disse. Eu que o diga, pensou. A sério e isso é..., olhe, fez um gesto com a cabeça na direcção da porta, aqueles não são os seus colegas? Eram mesmo. Caramba, que sorte, lindo!» In Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-501-8.

Cortesia de EASA/JDACT