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e wikipedia
«(…) O dr. Mikael Tengmann, pai de Ewa, era um homem
bem-disposto, igualzinho a Charlie Chaplin, e, tal como ele, andava com os pés
para fora. Com os seus 50 e tantos anos, aquele médico sortudo ainda ostentava
uma crista de cabelo preto e rebelde e um brilho juvenil nos olhos de um
castanho profundo. Vivia com Ewa em cima de uma oficina de vassoureiro na rua Walowa,
tendo transformado um dos quartos num consultório para ele e a sala de jantar,
numa sala de espera. Na manhã seguinte, pesou Adam e anotou a altura dele,
espetou-lhe o dedo, apalpou-o em vários pontos sensíveis e auscultou-o com o
estetoscópio. Enquanto ele registrava as medidas de Adam, pus-me a estudar os
quadros dos Alpes pendurados nas paredes; as sombras profundas e as súbitas
irrupções de rochedos batidos pelo sol davam às montanhas a aparência de torsos
entrelaçados. Todos, à excepção de um, tinham a assinatura do médico; uma pequena
fotografia de um Matterhorn branco e brilhante tinha a dedicatória Para
Mikael, de Rolf. Quando lhe perguntei o que era, o médico respondeu que
partilhara com um amigo aquilo a que chamava de um interesse pela forma como
procuramos a forma humana na natureza, e a razão disso.
Uma
resposta que me agradou. E, para meu alívio, Mikael em breve concluiu que Adam estava
com boa saúde, embora magro demais, sem qualquer indício de sarna, tuberculose
ou qualquer outra doença que pudesse transmitir aos outros Carusos em
miniatura. Antes de sairmos, foi à cozinha e presenteou Adam com um grande
frasco de raiz-forte, porque o malandrinho contara-lhe que comera a última das
nossas reservas havia já semanas e que era a comida desenxabida que lhe
enfiávamos pela goela abaixo que mandara seu apetite ir dar uma volta. Louco de
contentamento, o menino agarrou o frasco e pôs-se a dar saltos pela sala como um
autêntico canguru.
Decidi que também estava na hora
de meu sobrinho aprender inglês, especialmente porque o polonês e o alemão
pareciam haver deixado de ter o futuro como tempo conjugável pelos judeus. Começamos
com a letra de uma canção de Cole Porter, que passou a ser o hino cantado por nós
dois a cada sabá.
Mas encurralaram-nos mesmo assim,
claro, e no dia 16 de Novembro, um sábado, ficámos selados dentro da nossa prisão
judaica. Nosso universo ficou reduzido a pouco mais de 1,5 quilómetro quadrado.
Os moradores começaram imediatamente a guardar farinha, manteiga, arroz e
outros géneros essenciais. Eu comprei meia dúzia de fitas pretas para a minha máquina
de escrever Mala, para o caso de me dar uma vontade súbita de registar algumas
ideias no papel. Os preços subiram tanto que Stefa passava a vida se revoltando
contra o absurdo de comprarmos batatas a 95 zlotys o quilo, ou aspargos a 1
zloty cada um. E as filas, que davam a volta em bairros inteiros da cidade, eram
dignas de um dia de recenseamento bíblico. Para poder comprar sapatos novos
para Adam, tive de esperar duas horas e meia debaixo de uma dessas desgraçadas
chuvas miúdas tão típicas de Varsóvia, que sempre levavam meu pai a prometer que
havíamos de nos mudar para o deserto.
Durante essa primeira semana,
viemos todos para a rua como se tivéssemos naufragado, olhando fixamente aquele
perímetro de tijolo e arame farpado que nos isolava lá dentro, como se alguém
tivesse feito de nós personagens de um conto de Kafka. Éramos agora 400 mil
seres escorraçados, encurralados na nossa própria cidade. Como isto é possível? Uma
pergunta que não faz sentido, agora que sabemos o que sabemos, mas àquela
altura o espanto, e um pavor inconfessado, arregalava os olhos de quase todos nós,
mesmo os dos velhos rabinos causídicos, habituados como estavam a contemplar
visões estranhas e impossíveis descendo sobre eles, vindas do firmamento das suas
preces. Felizmente, os cristãos ainda podiam entrar no gueto mediante autorização,
e Jasmin Makinska, uma antiga paciente minha, trazia-nos frutas e legumes
frescos, bem como iguarias como café e compotas, umas duas vezes por semana.
Tinha 60 e poucos anos e trabalhava ali perto, numa galeria de arte bem ao lado
da praça do Mercado. Costumava pentear o cabelo numa aristocrática onda branca sobre a
testa e usava chapéus de penas exuberantes, que deixavam Adam tão espantado
quanto entretido.
Jasmin
visitou-nos pela última vez no fim de Novembro. Quando abri a porta para ela, caiu
em meus braços. Tinha as faces e o cabelo enlameados, e o casaco de tweed
rasgado na gola. Trazia na mão o chapéu de penas de avestruz, completamente
destruído. Meu Deus, o que aconteceu?, perguntei, guiando-a até ao sofá. Jasmin
contou-nos que os guardas alemães tinham descoberto na sua bolsa uma dúzia de sabonetes
de lavanda, os favoritos de Stefa, e os haviam confiscado. Quando protestou, um
dos nazistas agarrou-a, atirou-a ao chão e arrastou-a até a guarita. Adam não
estava na sala, mas a pobre mulher, apavorada, não quis nos dizer exactamente o
que aconteceu a seguir. Fui à cozinha buscar vodca e, quando voltei, dei com
Stefa falando baixinho com Jasmin, enquanto lhe limpava o rosto com uma toalha.
Quando minha sobrinha ergueu os olhos, vi que uma sombra escura descera sobre
eles, e foi então que entendi o que devia ter sido óbvio: o soldado alemão
violara-a». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record,
2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN
978-972-004-728-1.
Cortesia
de ERecord/PortoEditora/JDACT