quarta-feira, 30 de setembro de 2020

As Cruzadas. A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei…»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) Sigrid conteve decididamente a intenção de contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que plantavam acabava-se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com a solução. Ela havia falado rápido e em voz baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz.

O rei, primeiro, pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta falassem com ele direto e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos as mulheres. Você é uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid, disse ele, finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. Amanhã, quando já tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o padre Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais tempo a sussurrar.

De um momento para o outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei jamais poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia desfazer. Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou um pouco. O Espírito Sinto podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor nem sempre eram tortuosos. Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois dias de marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe da residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem para chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher.

Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída. Mas estava localizada numa área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres e outros pertencentes ao rei, com possibilidades de negociação ou compra. Nessa propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se servos e ferramentas fossem transferidos de Varnhem. Não foi exactamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez a Sua aparição perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os cavalos haviam chegado, correndo na sua direcção, perto de uma lagoa com muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais.

O jovem refreou o seu cavalo bem junto dela e falou com ela, e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas ao mesmo tempo não entendeu nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse significava que ela teria de dar a Deus um presente, que, no momento, era a atitude mais necessária, neste condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar um bom lugar para os monges de Lurõ. Mais tarde, ela observou bem os monges, à medida que saíam lentamente, após a sua longa apresentação. Não pareciam nem um pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia mais como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora, estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham conversado por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que muitos deles exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ, qualquer um podia ver isso, e o inverno, certamente, não lhes fora muito benigno. Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que conseguiam cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para trabalhar. E Varnhem era um lugar muito bom». In Jan Guillou, As Cruzadas, A Caminho de Jerusalém, 1998, Bertrand Editora, 2003, ISBN 978-972-251-375-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Jan Guillou, Cruzadas, Cultura,

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Laurence Gardner. A Linhagem do Santo Graal.. «Como observou astutamente H. G. Wells no início da década de 1900, a vida religiosa das nações ocidentais subsiste numa casa da história construída sobre areia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas o que tudo isso tem a ver com o Santo Graal? Tudo. O Graal tem muitas formas e atributos, como será revelado. Contudo, em qualquer forma que seja retratada, a busca do Graal é regida por um dominante desejo de honesta conquista. É a rota pela qual todos podem sobreviver entre os fortes, ou adequados, pois ele é a chave da harmonia e unidade em todo estado social e natural. O Código do Graal reconhece o avanço por mérito e respeita a estrutura da comunidade, mas acima de todas as coisas, ele é inteiramente democrático. Seja apreendido na sua dimensão física ou espiritual, o Graal pertence tanto a líderes como a seguidores, determinando que todos devem ser como um, em serviço comum e unificado. Para alguém pertencer aos fortes, deve estar plenamente informado. Só por meio da conscientização podem ser feitas preparações para o futuro. O regime ditatorial não é uma rota de informação; é uma constrição com o objectivo de impedir o livre acesso à verdade. A quem, portanto, serve o Graal? Ele serve àqueles que, apesar dos contratempos, buscam, pois são os campeões do iluminismo.

Ídolos pagãos do cristianismo

No decorrer de nossa jornada, confrontaremos um número de afirmações que podem, a princípio, parecer assustadoras, mas isso costuma acontecer quando se traz a história de volta às suas bases, pois a maioria das pessoas é condicionada a aceitar determinadas interpretações da história como factos. Muito do que aprendemos de história é por meio de propaganda estratégica, seja ela motivada pela Igreja ou por política. Tudo é parte do processo de controle; separa os mestres dos servos e os fortes dos fracos. A história política tem sido escrita por seus mestres: os poucos que decidem o destino e a sina dos muitos. A história religiosa não é diferente, pois seu desígnio é implementar o controle pelo medo do desconhecido. Dessa forma, os mestres religiosos retiveram sua supremacia à custa de devotos que genuinamente buscam iluminação e salvação. Quanto à história política ou religiosa, é evidente que os ensinamentos estabelecidos chegam às raias do fantástico, mas mesmo assim raramente são questionados. Quando estes são menos do que fantásticos, porém, costumam parecer tão vagos que quase não fazem sentido, se examinados em qualquer nível de profundidade.

Em termos bíblicos, nossa busca do Graal começa com a Criação, conforme definida no livro do Gênesis. Em 1779, um consórcio de livreiros de Londres publicou uma obra gigantesca com 42 volumes, Universal History, que viria a ser muito reverenciada e que afirmava, com grande grau de convicção, que o trabalho de Criação de Deus começou em 21 de Agosto de 4004 a.C. Surgiu, então, um debate a respeito do mês exacto, pois alguns teólogos achavam que 21 de Março seria uma data mais precisa. Todos concordavam, porém, que o ano estava correcto, e aceitavam que só seis dias tinham passado entre o nada cósmico e o surgimento de Adão. Na época da publicação, a Inglaterra se via no meio da sua Revolução Industrial. Era um período instável de extraordinárias mudanças e desenvolvimentos, mas, assim como no acelerado ritmo dos avanços da actualidade, pagou-se um preço. As preciosas artes e técnicas de outrora se tomaram obsoletas diante da produção em massa, e a sociedade se reagrupava para acomodar uma estrutura comunitária com base na economia. Uma nova estirpe de vencedores emergia, enquanto a maioria da população cambaleava num ambiente desconhecido que nada tinha a ver com os costumes e padrões da sua educação. Certo ou errado, esse fenómeno é chamado de Progresso, e o seu critério inflexível é aquele preceito do naturalista inglês Charles Darwin: a sobrevivência do mais forte.

O problema é que as chances de sobrevivência das pessoas costumam diminuir quando elas são ignoradas ou exploradas pelos seus mestres: aqueles mesmos pioneiros que forjam a rota do progresso, auxiliando (mas não garantindo) apenas a sobrevivência própria. É fácil vermos hoje que a História Universal de 1779 estava errada. Sabemos que o mundo não foi criado em 4004 a.C. Sabemos também que Adão não foi o primeiro homem na Terra? Essas noções arcaicas já estão ultrapassadas; mas para as pessoas no fim do século XVIII, essa impressionante história era o produto de homens mais esclarecidos do que a maioria e, portanto, presumivelmente correcta. Vale a pena, portanto, fazermos a nós mesmos a seguinte pergunta, neste estágio: quantos factos aceitos pela ciência e pela história actualmente também serão considerados ultrapassados à luz de futuras descobertas? Dogma não é necessariamente verdade; é apenas uma interpretação fervorosamente divulgada da verdade, com base nos factos disponíveis. Quando novos factos influentes são apresentados, o dogma científico muda naturalmente, mas isso é raro de acontecer com o dogma religioso. Neste livro, estamos particularmente interessados nas atitudes e ensinamentos de uma Igreja Cristã que não presta atenção a descobertas e revelações, e que ainda mantém boa parte do dogma incongruente que remonta a tempos medievais. Como observou astutamente H. G. Wells no início da década de 1900, a vida religiosa das nações ocidentais subsiste numa casa da história construída sobre areia. A teoria da evolução de Charles Darwin em The Descent of Man, em 1871 não causou nenhum dano pessoal a Adão, mas a ideia de que ele seria o primeiro ser humano caiu por terra. Como todas as formas de vida orgânica no planeta, os humanos evoluíram por mutação genética e selecção natural, no decorrer de centenas de milhares de anos. O anúncio de tal facto encheu de horror a sociedade, orientada pela religião. Alguns simplesmente se recusavam a aceitar a nova doutrina, mas muitos caíram no desespero. Se Adão e Eva não eram os pais primordiais, não havia Pecado Original e, portanto, o próprio motivo do perdão não tinha fundamento! A maioria entendera de maneira completamente errada o conceito de Selecção Natural. As pessoas deduziam que, se a sobrevivência era restrita aos mais fortes, então o sucesso devia depender de superar o próximo! Estava nascendo uma nova geração, céptica e cruel. O nacionalismo egotista florescia como nunca antes na história, e as divindades domésticas eram veneradas como, no passado, adoravam-se os deuses pagãos. Símbolos de identidade nacional (como Britannia e Hibernia) se tomaram novos ídolos do Cristianismo». In Laurence Gardner, A Linhagem do Santo Graal, 2004, Editora Madras, 2004, ISBN 978-857-374-882-6.

Cortesia de EMadras/JDACT

JDACT, Laurence Gardner, Literatura, Religião,

Luis Zueco. O Castelo. «Era o segundo filho, mais de uma vez o pai o quisera mandar para monge. Mas Lope Ferrech não fora feito para vestir o hábito. Era teimoso como uma mula e desde jovem que se empenhara em demonstrar à família…»

jdact

Pamplona. 22 de Novembro do ano de 1027

«(…) Lope Ferrech participava pela primeira vez naquele compromisso anual; não pertencia à alta nobreza, por enquanto. O pai deixara-lhe um reduzido território na serra de Leyre, não muito extenso nem rico. Mas suficiente para poder assistir aos mesmos banquetes que os grandes do reino, ainda que nunca dar-se com eles. Ao pai, custara-lhe uma vida conseguir aquelas terras, agora cabia-lhe tirar proveito delas. Desmontou ao entrar no faustoso pátio de armas do castelo e deixou a montada com o escudeiro, um robusto homem de queixo quadrado e costas largas como as de um urso. Fiel e obediente, tranquilo e calado, mas também feroz e sanguinário em combate. Sozinho, acabara com quatro homens de armas na passagem de Biniés, perto do caminho que levava a Santiago, quando sofreram uma emboscada às mãos de foragidos. Às vezes, não era claro quem eram os piores inimigos, se os sarracenos ou os cristãos que ansiavam por obter um saque a qualquer preço. Quem infringia as leis de Deus só podia receber a morte como castigo. No entanto, havia sempre deserdados e mortos de fome que ousavam atacar um senhor, por mais que isso significasse o inferno eterno. Dirigiu-se ao pavilhão ocidental, onde uma comitiva de músicos dava as boas-vindas aos nobres. Estavam presentes os escudos de armas de todas as casas: leões, castelos, caldeirões e outros emblemas que nunca vira impressionaram-no a ponto de o fazer duvidar se tinha lugar ali.

Se ele, infanção do Norte, era digno de partilhar aposentos com tão ilustre senhorio. Lembrou-se do pai, que lutara sem descanso para que um dia o filho estivesse ali. Sim, possivelmente era o senhor da casa com menos terras e bens da corte do rei Sancho, o Maior. Sim, a sua família não contava com gerações de cavaleiros. Mas fora convidado para a recepção real por direito, ninguém lhes oferecera nada, pelo contrário. Por mais de uma vez, o pai tivera de enfrentar senhores e também quem de senhor pouco tivesse. E, sem outro remédio, de cruzar com eles o seu aço, pois nesta vida são muitos os que te pisam do alto quando te veem chegar ao cimo, mas poucos os que te empurram para cima a fim de realizares os teus sonhos.

Os feitos e esforços do progenitor davam-lhe a possibilidade de talvez, um dia, ostentar um título maior. Isso dependia da sua espada e, sobretudo, da astúcia. Ele não fora educado para isso. Era o segundo filho, mais de uma vez o pai o quisera mandar para monge. Mas Lope Ferrech não fora feito para vestir o hábito. Era teimoso como uma mula e desde jovem que se empenhara em demonstrar à família que segurava melhor uma espada do que um crucifixo. Herdara o título do antepassado porque o primogénito, o irmão Antón, encontrara a morte durante uma razia dos muçulmanos do reino de Saraqusta. Com a queda do califado, o rei de Pamplona tentou fazer avançar a fronteira, mas nada foi conseguido, além de verter sangue cristão». In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

JDACT, O Castelo, História, Século XI, Idade Média, 

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O Castelo. Luis Zueco. «Veneráveis clérigos, bispos embrulhados nas suas casulas púrpura e estolas douradas. Homens de armas, escudeiros, pajens e gente do povo…»

jdact

Castelo de Xabier. Novembro do ano de 1027

«(…) Regressou para junto de Eneca e agarrou-a pelo braço. Voltou a ouvi-lo, estava mais perto. Olhou para a filha como só uma mãe pode fazer. A pequena não se parecia nada com ela, nem no físico nem na forma de ser. Mas era sua filha, sangue do seu sangue. Tirou a cruz que lhe pendia do pescoço e passou-a pela cabeça da menina. Eneca, sussurrou, nunca deixes que alguém ta tire, promete-me. Mãe... Promete!, exigiu Iguazel, sacudindo-a. Sim, mãe. Muito bem, minha filha. Lembras-te de quando vamos até à ponte do rio para nos despedirmos do teu pai? Sim, claro. Pois agora quero que vás até lá sozinha. Fá-lo-ás? Eneca assentiu com a cabeça. Isso mesmo, já és crescida, sei que és capaz. Nunca confies em ninguém. Mas...

Voltou a ouvir-se o relincho de um cavalo e gritos. Iguazel fitou-a com infinita tristeza, como seria capaz de se separar dela? Era tão pequena, tão frágil… e, ao mesmo tempo, conhecia a enorme força que transbordava dos seus jovens olhos. Tinha de o fazer, estavam perto e sabia já o que aconteceria caso apanhassem a filha. Vai e não pares. Uma vez na ponte, espera que eu chegue. Promete. Prometo, mãe. E deu-lhe um beijo na testa. Agora corre, vamos!

A mãe ficou de pé junto ao rio, enquanto a rapariga seguia o leito. Pegou numa pedra e agachou-se atrás do tronco de uma grossa árvore. Naquela penumbra espessa, apenas distinguia sombras, viu então como alguns ramos se moviam diante dela. A menina parou ao ouvir o relinchar de um cavalo. Virou-se para onde acabara de se despedir da mãe e descobriu-a escondida atrás dos arbustos. O cavaleiro desmontou e desembainhou a espada, cuja lâmina curva cortou a noite com um silvo. O sarraceno deu um par de passos, deixando a mãe de Eneca atrás de si. E então, o olhar do infiel atravessou a penumbra até descobrir Eneca ao longe, eram os olhos de sangue. A mãe surgiu de entre as sombras e atingiu-o na cabeça, derrubando-o. Corre, Eneca! Corre! O muçulmano ergueu-se com o rosto ensanguentado, esquivou-se ao golpe seguinte da mulher e agarrou-a pelo pescoço só com uma mão. Ela olhou para o lugar onde vira Eneca e sorriu de alívio ao verificar que a filha já não se encontrava ali.

Pamplona. 22 de Novembro do ano de 1027

Naquela manhã, o mercado fervilhava, repleto, tendo ali acorrido comerciantes de todos os lugares do reino. Traziam vinho do Norte do condado de Castela, jóias recém-chegadas das terras de Leão, cerâmicas de Astorga, tecidos de Haro e Nájera, doces de Palencia, calçado de Carrión, peixe de Laredo e Santillana, queijo do vale de Baztán, madeira talhada de Garay e as melhores peles curtidas em Boltaña e em Jaca.

As ruas da cidade estavam adornadas com pendões de todas as casas vassalas do rei. Um fervedouro de gentes variegadas, cavaleiros adornados com os melhores trajes, damas ataviadas com as suas ricas jóias, abundantes comitivas, vistosos cortejos, senhores de todos os castelos do reino, gentis embaixadas dos condados de Castela, Aragão, Sobrarbe e Ribagorça. Veneráveis clérigos, bispos embrulhados nas suas casulas púrpura e estolas douradas. Homens de armas, escudeiros, pajens e gente do povo que se esforçava por ver os seus senhores. Todos sabiam da chegada a Pamplona do mais ilustre da nobreza do reino. Há vários anos que o rei Sancho, o terceiro de seu nome, chamado por muitos Sancho, o Maior, por estar a sua grandeza acima de qualquer outro ilustre monarca, costumava celebrar a festividade de Santa Cecília em Pamplona. A corte era itinerante, por isso, apesar de ser a capital do reino, as estadas da família na cidade eram escassas e, quando aconteciam, não havia vassalo que não acorresse aos festejos». In Luis Zueco, O Castelo, 2015, Alma dos Livros, 2020, ISBN 978-989-899-914-0.

Cortesia de AdosLivros/JDACT

JDACT, O Castelo, História, Século XI, Idade Média,

O Sebastianismo. História Sumária. José Van Den Besselaar. «Portugal, por parte de seus reis, gemerá por muito tempo e padecerá de muitas maneiras. Mas Deus te será propício e, não esperadamente, serás remido por um não Esperado»

jdact

O messianismo cristão

«(…) Se os santos estrangeiros mostravam tanto interesse pelos destinos de Portugal, não é de admirar que os santos nacionais se esforçassem por excedê-los. Muito popular, sobretudo na época da Restauração, era uma profecia de São frei Gil, um dos primeiros dominicanos de Portugal (m. ca. 1265). Traduzida para o Português, a parte essencial da sua profecia é deste teor:

 Portugal, por parte de seus reis, gemerá por muito tempo e padecerá de muitas maneiras. Mas Deus te será propício e, não esperadamente, serás remido por um não Esperado. A África será submetida. O Império Otomano desmoronar-se-á. A Igreja será coroada com mártires. Bizâncio será destruído. A Casa de Deus será recuperada. Tudo será transformado. […] Reviverá a Idade do Ouro. Por toda a parte reinará a Paz. Bem-aventurados os que virem isto.

Como o não Esperado tanto podia ser João IV como Sebastião I, a profecia agradava aos dois partidos. O que não admitia dúvida era que o redentor de Portugal seria Imperador da Monarquia Mundial. Outro santo português, dotado de espírito profético, foi o Beato Amadeu, fundador de um ramo austero dos frades menores da Itália (século XV) e autor de um comentário sobre o Apocalipse (ainda inédito). Jaz sepultado em Milão, com um livro fechado na mão: Sucessos do Reino de Portugal; o livro se abrirá a seu tempo. O caso não podia deixar de dar origem a muitas especulações.

Em meados do século XVI vivia em Lisboa um sapateiro santo, chamado Simão Gomes, a quem se atribuíam profecias sobre a catástrofe de Alcácer-Quibir, o domínio filipino e a recuperação da independência nacional. O padre José Anchieta, de origem castelhana, mas integrado na causa nacional como apóstolo do Brasil, no dia fatal de 4 de Agosto de 1578 teria dito ao capitão Miguel Azevedo que Sebastião I perdera a batalha, mas não morrera e que, ao cabo de muitos anos, novamente tomaria posse do seu Reino. Na galeria dos profetas nacionais figura também, desde o final do século XVII, o padre António Vieira. Este, embora não gozasse de fama de santo, como os já referidos varões, teria prenunciado o terramoto de Lisboa na décima seguinte:

Depois de passarem mil,

e setecentos voarem,

dois cinco virão que acabem

aquela obra em porfil.

Um arroto não subtil

do mais pesado elemento

causará grande lamento

com seu arrojo iracundo.

Dará memória ao Mundo

e à Lísia, por muito tempo.

Em meio a tantas vozes masculinas, era inevitável que também o sexo frágil se fizesse ouvir. Diferentemente dos homens, as mulheres não proferiam profecias, mas recebiam visões ou revelações, coisas julgadas mais conformes à modéstia feminina. Entre as mulheres favorecidas pelo Céu mencionamos aqui a madre Leocádia da Conceição, no Porto, e a freira Leonor Roís, em Belém. Também eram alegadas visões da grande mística castelhana, Santa Teresa de Ávila. Havia ainda profetas leigos, que, além do mais, não eram santos nem letrados. O mais célebre entre todos eles é Bandarra. Outro profeta leigo é um certo Simão Nunes, de quem praticamente nada sabemos senão que foi ourives em Braga. Dele possuímos umas profecias rimadas, que, como era de esperar de um ourives, têm a pretensão a certo requinte técnico. Nem faltam nos cartapácios dos sebastianistas os vaticínios de Nostradamus, embora quase irreconhecivelmente deturpados. Ao que parece, os compiladores eram muito pouco versados na língua francesa, tendo das Centuries só conhecimentos de segunda mão, que eram incapazes de verificar na fonte.

Alguns deles deviam-no ter por autor castelhano, porque o costumavam citar na língua do país vizinho. O resultado desta confusão é deplorável e, por vezes, cómico. Onde o médico-astrólogo de Salon diz:

Gand et Bruxelles marcheront contre Anvers, alguns cartapácios apresentam esta tradução: Gentes de Bruxelas marcharão contra Andaluzes.

E as profecias joaquimistas? A resposta pode ser breve. Do próprio abade não ocorre nenhum texto nem nos cartapácios, nem nos tratados dos sebastianistas. Joaquim Fiore era um ilustre desconhecido, inclusive para os dois coriféus do messianismo seiscentista: Dom João Castro e o Padre António Vieira. Ambos falam com muito respeito no venerável Abade, mas confundem as obras autênticas e apócrifas (coisa bastante comum no século XVII, também fora de Portugal) e ignoram por completo a doutrina dos três estados e o método exegético das concórdias. João Castro dá mostras de conhecer bem a literatura do joaquimismo posterior, sobretudo nos seus escritos inéditos, mas também ele não faz a devida distinção entre a doutrina do mestre e a dos seus adeptos». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT

D. Sebastião, JDACT, José Basselaar, Cultura, História, 

domingo, 27 de setembro de 2020

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Deixemos um taful que blasfemou de Santa Maria e logo morreu. Há histórias melhores. Jogava um catalão em frente da igreja, perdeu e atirou uma seta para o céu…»

 

jdact

Frei Paio de Coimbra

«(…) Onde sorrimos com mais vontade é num sermão de S. Tomás de Cantuária, quando frei Paio nos fala dum epiléptico que deitou onze rãs pela boca fora. Que significavam elas? Os poetas a contar fantasias, com voz de inchada modulação, e os jograis loquazes, habituados a viver em casa dos prelados. Boa ironia, sim senhor! O clero também leva a sua conta, embora pequena, por se tratar de panegíricos. Eles abrem coroa só por amor das prebendas e das riquezas. E dizem: vamos abrir coroa aos nossos parentes, a fim de eles herdarem o património e os rebanhos do Crucificado, isto é, as paróquias! Ficaremos com as dízimas, oblações e primícias. Como este dominicano e Santo António, centenas doutros pregadores criticavam as fraquezas e crimes dos homens, a ferro em brasa ou com o chicote da sátira. Perdeu-se quase tudo, mas sabemos que eles gostavam de contar histórias e exemplos, ora engraçados ora a dar a impressão de que o mundo estava perdido. A preguiça humana resistia a tudo, mas não de todo. E foi esta enorme força verbal que fez rir e chorar a Idade Média, em torno dos púlpitos, muitas vezes ao ar livre. Tais sermões não equivaliam a cantigas de escárnio e maldizer. Mas participavam, às vezes, da sua graça desbocada.

A Sátira nas Cantigas de Santa Maria

Conforme escreve José Guerrero Lovillo, os iluminadores e miniaturistas das Cantigas de Santa Maria, al enfrentarse con las representaciones demoníacas, lo hacen con cierto tono burlón, presagio del carácter cómico que iba a tomar en el siglo, XIV. E acrescenta, pouco depois: en el siglo XIII, el artista se atreve a entablar coloquios con el espíritu maligno, como aquel maestro pintor de la Cantiga LXXIV, con quien el diablo hubo de reñir y le menaço muy mal por que o pintava feo. Em paga, pintava ele muito formosa a Virgem Maria, e era este contraste que punha o diabo fora de si. Se ao menos o pintasse regularmente! Não. Punha-o mais feio do que outra ren. Verdade seja que nós sorrimos, acima de tudo, porque não acreditamos nesta questão entre o diabo e o pintor. Os leitores de então e os que escutavam o canto destes milagres também sorririam, mas por verem o diabo mais negro do que o pez e danado contra quem o assim representava. Era vaidoso, o maroto.

Muitas das Cantigas de Santa Maria assumem atitude polémica contra hereges, pecadores e judeus incréus. E revelam, no tom geral e no refrém, um sorriso vitorioso pela derrota dos maus, como se o autor exclamasse: ora vejam e tenham cuidado. Meteram-se com a Gloriosa, caiu-lhes o castigo em cima e foi bem feito. Há, nelas, uma sátira implícita da maldade e da estupidez dos inimigos da Virgem Maria e um sorriso largo de como pagaram caro o atrevimento. O imperador Juliano, falso e felon, desrespeitou S. Basílio e saiu-lhe da boca este insulto: na volta, hei-de obrigar-te a comer palha! Pois bem, montado num cavalo branco, veio depois S. Mercúrio, por ordem de Santa Maria, e atravessou-lhe a pança duma lançada. Assim morreu Juliano, o chufador. Até os vocábulos são, por vezes, escarninhos. Certa mulher da Gasconha ria-se da criada e dizia-lhe que dali não iria em peregrinação a Rocamador, a não ser que a Virgem Maria a levasse na cadeira em que ela, a mulher da Gasconha, estava sentada. Meu dito, meu feito. Voa a cadeira e vai depô-la diante do altar da mui Graciosa! Arrependida, exclamou: Astrosa fui e o mesmo acontecerá a quem fizer como eu.

Já se vê que, neste caso, aumenta o sorriso e a troça com vermos a mulherzinha assustada a ir pelos ares, um pouco à maneira das bruxas montadas num pau de vassoura. Deixemos um taful que blasfemou de Santa Maria e logo morreu. Há histórias melhores. Jogava um catalão em frente da igreja, perdeu e atirou uma seta para o céu, contra Deus e Nossa Senhora. A seta voltou e caiu precisamente no tabuleiro de jogo, tinta de sangue. Que fez o jogador? Entrou para religioso, em ordem forte e Santa Maria lhe perdoou. Talvez o auditório pensasse, ao findar a cantiga: escapou de boa! O que nos espanta é o enorme poder de aceitação, implícito nestas cantigas. Mas como eram a favor de Nossa Senhora, os ouvintes escutavam-nas com ternura e punham-se a favor da Gloriosa e contra os blasfemos, indignando-se contra os pecadores e rindo-se, por vezes, dos castigos. Ou melhor, com os castigos». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,

Estudos Ibéricos. Maria Idalina Rodrigues. «… a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia…»

jdact e cortesia de wikipedia

Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII

«Num tempo de saudável rotação e de descrédito de velhos travões no andamento dos estudos literários, em que, com o assentimento dos críticos e a atenção interessada de muitos investigadores, justamente crescem e se celebram, entre nós, os trabalhos sobre Literatura oral e tradicional e, em especial, sobre o Romanceiro ibérico, não deixa talvez de ser prudente avisar à partida o descuidado leitor deste escrito daquilo que nele por certo não encontrará. Ou seja, preveni-lo honestamente de que o envolvimento com os velhos relatos lírico-dramáticos não avaliza, neste caso, um entendido na sedutora rede de definições, normas de estrutura ou de discurso, rotas antigas e actuais do romance peninsular; recomenda apenas, e muito mais modestamente, outro leitor, agradado do teatro peninsular dos séculos XVI e XVII, com certa prática e muito comprazimento no ajustar dos textos espanhóis e portugueses, não raro com antepassados comuns, que recuam, por sinal, até ao Romanceiro luso-espanhol. Aliás, a travessia pelos romances dos dramaturgos ibéricos, particularmente dos da vizinha Espanha, foi tão larga que valeria bem a pena levar mais longe o que já está feito no sentido de separar trigo e joio nessa vasta seara das letras. Temos, de resto, pioneiros que clamam por continuadores: Carolina Michaëlis de Vasconcelos, por exemplo, avançou oportunamente um rol bastante significativo de embrechamentos e aproximações. Na esperança de estudo alheio de maior fôlego, vão entretanto os afeiçoados, a esta temática dos cruzamentos e contaminações entre romance e teatro, diversificando as achegas em áreas parciais, em busca da possível concertação final.

Foi a dentro destes parâmetros que me aventurei a acudir de perto, e a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia, conta a morte de Valdovinos por Carloto, filho de Carlos Magno, e a vingança reclamada pelo marquês de Mântua, seu tio, e prontamente satisfeita pelo próprio imperador. A recapitulação das destemidas proezas, onde a lembrança e a invenção se confundem, ficará condicionada aos ensinamentos, aliás, nem sempre coincidentes, de umas quantas obras literárias vindas a público entre os séculos XV e XVII:

1.° um grupo de romances jogralescos que facilmente podem caracterizar-se como adaptações peninsulares de troços da gesta francesa;

2.° o auto do dramaturgo quinhentista português Baltasar Dias, intitulado Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno;

3.° a Tragicomedia Famosa de El Marqués de Mantua, da autoria do universalmente reputado poeta dramático espanhol Lope de Vega Carpio.

Sobre estes textos se encadearão, a par de algumas informações desgarradas, que rapidamente lhes esbocem o perfil, os resultados de uma leitura prioritariamente destinada a avaliar em que medida se conciliam ou separam, ao reaverem um comum quinhão de figuras e sucessos. A tragicomédia de Lope de Vega, porém, de feitura dramática mais habilidosa e amadurecida e de meditado alcance ideológico, será motivo para um levantamento um tanto mais ambicioso de intenções e procedimentos estéticos.

Os Romances Carolíngios

Comecemos então pelos romances, adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que são parte, e sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, dissemo-lo atrás, romances protagonizados pelo marquês de Mântua, por Valdovinos e por Carloto.

No primeiro volume do Romancero General, Agustín Durán reúne sete sobre ligações e brigas entre tão afamadas personagens (números 355 a 361), mas são os três primeiros que nos importa pesquisar, porquanto foi sem dúvida neles que aprenderam o melhor da lição Baltasar Dias e Lope de Vega, apesar de não faltarem razões para se admitir que os restantes não eram desconhecidos de nenhum dos dramaturgos. Lope de Vega sobretudo deve ter tido também em mente o romance 358, o do anúncio da conversão da infanta moura Sevilha, por amor do cristão Valdovinos; dos outros, que interpretam os gestos desesperados da morica, ao saber da morte do amado, entoam o seu pranto ou enfatizam o seu apelo ao rei, talvez que a memória lhe tenha guardado alguns pormenores mais impressivos, mas é difícil precisar até que ponto os relembrou, nas tarefas da dramatização» In Maria Idalina Resina Rodrigues, Estudos Ibéricos, Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII, Ministério da Educação, 1987, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987, Depósito Legal nº 17291.

Cortesia de ICLP/ME/JDACT

JDACT, Maria Idalina Rodrigues, Cultura e Conhecimento, Caso de Estudo, Literatura, 

A Conspiração Franciscana. John Sack. «E o ministro geral enterrou frei Leo com as devidas honras?, perguntou. Com certeza. Na basílica, ao lado dos companheiros. Dizem que é a melhor das honrarias»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Grifo

Festa de São Remígio. 1 de Outubro de 1271

«(…) Conrad fechou a cara. Ele não é um frade que você devesse imitar. Porque não me conta o motivo que o fez vir até mim?, mirou de novo aqueles olhos escuros, que de repente se encheram de compaixão, quase chegando às lágrimas. Então e finalmente compreendeu. Frei Leo?, disse, respondendo à própria pergunta. Sim. Ele morreu em paz? Em paz, na mesma cabana em que São Francisco faleceu. Ele deve ter ficado contente por isso.

O eremita ajoelhou-se. Já esperava pela perda do amigo e mentor. Afinal, Leo vivera mais de oito décadas. Mesmo assim, sua morte era um golpe. Quem conseguiria compreender o plano divino? Leo suplicara para ser levado com seu mestre São Francisco, e ainda assim Deus o prendera à vida por mais meio século, trabalhando e escrevendo. O pequenino padre tinha sido enfermeiro pessoal do fundador, trocando os curativos e passando unguentos nas feridas que se abriram nas mãos, nos pés e no lado do corpo dele depois da terrível visão no monte La Verna. Leo também fora confessor e secretário do santo, virtualmente os cargos mais importantes da Ordem, caso estivesse interessado em poder. Mas Francisco escolheu seu companheiro justamente pela sua admirável simplicidade. Com mania de dar apelidos, ele rebaptizou Leo, o leão, de Fra Pecorello di Dio, Irmão Cordeirinho de Deus. Até os frades mais jovens, como Conrad, conheciam a famosa história da briga de Leo com Elias, depois da morte de Francisco, em que ele espatifara o grande vaso onde o ministro geral guardava as doações para a nova basílica. Elias mandou que o surrassem e o baniu de Assis por conta da sua rebeldia. Leo recolheu-se à obscuridade e começou a escrever pequenos tratados panfletários denunciando a falta de rigor e os abusos dentro da Ordem. Tornou-se a consciência dos frades, mencionando tanto os preceitos quanto o espírito de São Francisco como fontes de inspiração, e a facção Conventual o odiava por isso. Conrad ficou imaginando se frei Bonaventura, o último na linha de sucessores de Elias, teria passado por cima da antiga rixa.

E o ministro geral enterrou frei Leo com as devidas honras?, perguntou. Com certeza. Na basílica, ao lado dos companheiros. Dizem que é a melhor das honrarias. E era o que ele merecia, afirmou Conrad. Quando Conrad mexia a sopa, o menino retirou o capuz. Cabelos pretos cortados bem curtos desciam rectos até a ponta da orelha. Os olhos amendoados tinham a expressão de surpresa das corças, o que era acentuado pelas longas pestanas. A pele branca como leite das faces e têmporas brilhava tão translúcida que, mesmo sob a pouca claridade, Conrad conseguia acompanhar as veias. O sorriso era largo, o nariz longo e recto com narinas dilatadas. Um nariz nobre, pensou Conrad. Esse menino é bonito demais para estar vivendo com frades mais velhos, especialmente frades que seguiam o comportamento dos monges negros. Só Deus sabia qual dos abundantes vícios monásticos estariam imitando àquela altura.

Quando Conrad parou de mexer a comida, o menino enfiou a mão dentro do saco que deixara debaixo da mesa e retirou um pergaminho enrolado. O mestre do noviciado mandou que lhe entregasse esta carta. Frei Leo disse que era absolutamente indispensável que a recebesse logo após sua morte. O eremita desenrolou o manuscrito em pergaminho à luz do fogo. Leu-o varias vezes. O que diz?, Fabiano perguntou. Não está lacrado. Fico surpreso que você não o tenha lido. Seu mestre ainda não lhe ensinou as letras? Um pouco. Só consegui entender algumas das palavras. Pedi aos frades que encontrei pelo caminho que lessem para mim, mas só diziam que..., não tinha nada de interessante. Conrad revirou os olhos para o céu. Petulante, esse menino. E talvez perigoso, por ser tão ingénuo. Esses frades lhe disseram seus nomes?, perguntou. Não. Mas um deles era mais velho que o tempo, e o outro tinha o cabelo louro, se isso vale de alguma ajuda. Conrad franziu os lábios. Não ajuda em nada». In John Sack, A Conspiração Franciscana, 2005, Edição O Quinto Selo, 2006, ISBN 978-989-613-048-0.

Cortesia de EQuintoSelo/JDACT

JDACT, John Sack, Itália, Literatura, Conhecimento, 

sábado, 26 de setembro de 2020

A Conspiração Franciscana. John Sack. «Frei Conrad franziu a testa, intrigado, ao chegar ao topo da trilha que ziguezagueava até à sua cabana. O esquilo, agitando a cauda e guinchando no parapeito da janela, indicava que havia um visitante lá dentro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Assis. 25 de Março de 1230

«A penumbra da entrada e o som agora abafado da confusão do lado de fora da igreja apaziguaram os seus nervos. Correu os olhos ao redor e viu o rosto pálido do castelão, o desdém franzindo os lábios do mercador, o maxilar contraído do prefeito, e perguntou-se por que cada uma dessas pessoas se teria envolvido naquele sacrilégio. Suspeitava que o comerciante haveria de ficar leito em vender as relíquias, um por um dos ossos santificados, apesar de serem os restos mortais de seu único irmão. Uma voz soou, vinda do fundo da nave central: rápido; tragam o caixão para cá.

Dois frades, o mestre construtor frei Elias e seu lacaio, esperavam em cada lado do altar principal. Um círculo de tochas queimava nos seus suportes, atrás deles, fazendo com que Simone se lembrasse da maldição sobre o fogo do inferno lançada pelo bispo. A luz das tochas projectava a sombra de frei Elias dentro da igreja, tornando-o muitíssimo maior do que o franzino conspirador que tramara o roubo. O calor afogueou o rosto do cavaleiro, apesar do vento gelado que percorria a igreja. Ficou imaginando, se Elias poderia absolvê-lo antes de saírem, ainda que o frade fosse o seu parceiro nesse pecado. Apavorava-lhe a ideia de encarar a multidão que o esperava do lado de tora lendo sua alma em pecado mortal.

Ao chegarem na parte da frente da nave, os quatro homens encontraram o altar-mor deslocado da sua base e uma profunda escavação na rocha abaixo dela. Os homens prenderam o caixão em cordas paralelas ao buraco e, com a ajuda dos frades, abaixaram-no até dentro do sarcófago. Jogaram as cordas sobre o caixão. Então, Elias girou uma das colunas em miniatura, ricamente ornadas, que ficavam na parte traseira do altar, até se ouvir um ruído seco. O bloco maciço moveu-se, rangendo devido à pesada rotação que fazia sobre o buraco. Finalmente, o frade limpou com os pés a poeira que se juntara ao redor da base de mármore, alisando-a depois com a sola da sandália para não parecer que tinha sido tocada. Ontem, os operários começaram a aplicar os ladrilhos no chão da abside, explicou. Vão cobrir esta área amanhã. Não haverá nenhum vestígio. Ninguém saberá onde ele descansa. Dobrou um joelho junto ao altar, inclinando a cabeça vagamente na direcção do sarcófago. Nenhum vestígio, padre Francesco, repetiu, num sussurro satisfeito.

Vosso segredo permanece convosco. Simone recordou-se da reunião no palácio de Giancarlo, quando o próprio frade Elias argumentara que o corpo deveria ser escondido, até mesmo dos fiéis, protegê-lo dos caçadores de relíquias. Havia duvidado das intenções do homem desde o começo. De acordo com a interpretação do cavaleiro, Elias ainda fervia de raiva devido à eleição que perdera depois da morte de São Francisco. A irmandade havia nomeado outro frade para suceder ao santo na função de ministro geral da Ordem; um homem de mais idade, piedoso, porém com menos capacidade administrativa que o dedo mindinho de Elias. Fosse como fosse, Elias resolveu tirar vantagem da derrota quando o papa lhe pediu para que se encarregasse pessoalmente da construção da basílica. Agora, ele usara o seu prémio de consolação contra seus detractores e escondera a mais preciosa relíquia da Ordem onde jamais seria encontrada. Da próxima vez, os irmãos pensariam duas vezes antes de votarem contra ele. Depois de aplainar a área ao redor do altar, Elias fez sinal para o lacaio: frei Illuminato, vá buscar a urna. O rapazote desapareceu, encoberto pelas sombras do transepto. Ao voltar, minutos depois, trazia um pequeno relicário de ouro. Elias suspendeu a tampa e retirou do interior um anel com uma pedra azul-clara entalhada. Enfiou-o no dedo enquanto seu auxiliar distribuía anéis idênticos aos outros. Neste dia está formada a Compari della Tomba, a Fraternidade da Tumba, disse Elias. Vamos fazer o juramento, sob pena de morte, de jamais revelar o local onde os ossos estão enterrados. E, igualmente, jurar de morte qualquer um que descubra o esconderijo por acaso, acrescentou Giancarlo, severo. Deus é nossa testemunha. Deus é nossa testemunha, repetiram os outros. Levantaram as mãos com os anéis à luz dos archotes e juntaram-nas. Cada um segurou com firmeza o punho do que estava ao lado. Amém! Assim seja!, exclamaram em uníssono.

O Grifo. Festa de São Remígio. 1 de Outubro de 1271

Frei Conrad franziu a testa, intrigado, ao chegar ao topo da trilha que ziguezagueava até à sua cabana. O esquilo, agitando a cauda e guinchando no parapeito da janela, indicava que havia um visitante lá dentro, alguém que não era o criado de Rosanna. Quieto, Irmão Cinzento!, ralhou, deixando cair o feixe de lenha que trazia ao ombro. Dê ao estranho as boas-vindas que daria a mim. Ele pode ser um dos anjos do Senhor. O eremita envolveu o esquilo nas suas mãos e depois o soltou com leveza sobre o tronco escuro de um pinheiro que ficava logo adiante. O animal subiu para um galho mais alto enquanto Conrad entrava pela porta. Sem se incomodar com a conversa, o visitante, um frade, dormia com a cabeça aninhada sobre a mesa do eremita, o rosto escondido sob o capuz. Conrad resmungou baixinho, satisfeito. Se tivesse de ser sociável e conversar, pelo menos o assunto seria espiritual. As sandálias de couro e a batina nova, de um cinza cor de rato, que o seu hóspede usava não lhe agradaram tanto. Provavelmente era um Conventual, um daqueles frades mimados cuja vida estava mais próxima dos monges negros enclausurados do que de um filho de São Francisco desenraizado. Torceu para que a conversa não acabasse na velha discussão sobre a essência da verdadeira pobreza. Estava cansado e desconfiado daquele assunto; não lhe havia trazido nada além de sofrimento». In John Sack, A Conspiração Franciscana, 2005, Edição O Quinto Selo, 2006, ISBN 978-989-613-048-0.

Cortesia de EQuintoSelo/JDACT

JDACT, John Sack, Itália, Literatura, Conhecimento,

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

John Sack. A Conspiração Franciscana. «Tudo o que a multidão conseguia era manter o olhar fixo na mesma direcção dos olhos de Simone. Afinal, o cavaleiro viu o incenso queimando na ruela»

 
jdact

 Assis. 25 de Março de 1230

«O cavaleiro Simone della Rocca Paida esquadrinhava a viela onde os frades iriam aparecer. Andem; venham logo, seus ratos de igreja detestáveis. Vamos acabar com essa história infeliz. Empertigou-se sobre a sela e sacou a espada da bainha. Sua língua estava seca como um chumaço de lã. A multidão o irritava. Durante toda a manhã, levas de espectadores tinham acorrido à praça, sem se incomodar com o lixo que lhes chegava aos tornozelos nem com outra chuvarada que parecia prestes a desabar. O administrador-chefe da cidade, prefeito Giancarlo, havia declarado feriado, e não seria uma simples chuva de Primavera, muito menos a barreira erigida durante a noite, que iria estragar o espírito festivo. Os guardas-civis de Giancarlo tinham arrastado pedaços de madeira e blocos de mármore do canteiro de obras da nova basílica superior, ainda incompleta, para levantar um muro baixo que cortava a praça. Agora, os guardas afastavam as pessoas para trás do muro como peixes numa represa, onde elas se acotovelavam para conseguir a melhor vista. O burburinho ia aumentando com a aglomeração. Alguns se esforçavam, inutilmente, para ouvir o canto dos frades no meio do barulho. Tudo o que a multidão conseguia era manter o olhar fixo na mesma direcção dos olhos de Simone. Afinal, o cavaleiro viu o incenso queimando na ruela. Quando a procissão entrou na praça, um grande crucifixo emergia da fumaça e dos solidéus dos meninos que balançavam os incensórios. Tarde demais para hesitações.

Simone havia posicionado seus cavaleiros de frente para o espaço aberto diante da entrada da igreja superior. Fez um sinal de cabeça para os outros, colocou o elmo e alisou o cavanhaque para dar sorte. A mão se contraía sobre o punho da espada. Os joelhos apertaram as costelas do cavalo. Engoliu com força para vencer a secura da garganta e seguiu lentamente com seu animal em direcção ao espaço entre as pessoas e a procissão. Os cascos sugando a lama a cada passada e o suave chacoalhar da armadura do cavaleiro quase não perturbavam a cantoria da fila dupla de cardeais usando chapéu e batina vermelhos, que avançava devagar como uma centopeia brilhante ao longo do muro que cortava a praça. Nem eles nem os bispos com mantos de arminho que vinham em seguida demonstraram o mais leve temor dos cavalos que avançavam aos poucos. Tampouco as pessoas que se benziam e se ajoelhavam atrás da barricada. E porque haveriam de temê-los? Aqueles eram os guerreiros de Rocca Paida, a fortaleza no cume do morro que protegia a cidade. Todos haviam escutado rumores sobre a intenção dos habitantes de Perúgia de sequestrarem os restos mortais do santo. Pelo menos era isso que Simone esperava. O factor surpresa seria o seu melhor aliado. Atrás dos bispos vinham os frades e, bem no meio deles, os carregadores do caixão. Atravessaram a piazza ao longo da mureta da encosta que delimitava o seu lado sul. O crucifixo, os cardeais e os bispos já haviam descido o caminho de terra que levava à igreja inferior e esperavam em formação no pátio externo.

Chegara a hora. Quando o caixão começou a descer a ladeira, ele gritou: Adesso! Agora!, e cravou as esporas na sua montaria. O cavalo investiu contra a fila, distribuindo patadas com os cascos dianteiros, conforme fora treinado para agir durante as batalhas. Com ossos quebrados, um frade foi derrubado gritando de dor; outro saltou para o barranco a fim de se livrar do enorme animal. Simone sorriu sob o elmo e pôs-se a golpear ferozmente com sua espada. Ao girar vagarosamente o seu cavalo, viu os guardas-civis enfrentarem um grupo de homens que tentava escalar a barricada. Proteja o alto do caminho, ordenou ao cavaleiro a seu lado. Dois dos seus cavaleiros já desciam em direcção ao féretro, forçando os carregadores do caixão a se dirigirem para o pátio mais abaixo. A princípio, os frades cooperaram, correndo para o refúgio da igreja e a protecção do prefeito, que aguardava no início da estrada com o restante da guarda civil. Mas os homens de Giancarlo usaram as suas lanças para dispersar os prelados pelo pátio, provocando um alvoroço de mitras e mantos e saias arrebanhadas, cujos donos tentavam fugir em direcção ao caixão. Tarde demais, os frades se deram conta de que haviam caído numa armadilha. Simone açoitou o cavalo e desceu o morro, ao longo da trilha.

Mais em baixo, bem perto dele, um frade agarrara um guarda pelo braço e gritava com voz estridente. O guarda arremessou-o para fora da estrada com um golpe da sua manopla de metal, e o cavalo de Simone teve de saltar por cima do corpo que vinha deslizando ladeira abaixo. O cavaleiro somente olhou para trás quando chegou à base da colina. O capuz do frade voou longe, expondo uma longa trança negra. A viúva romana! Maldita! Ela não tinha nada que sair na procissão com os frades. Escorria sangue da sua face quando finalmente conseguiu se levantar, mas ela parecia não notar nem se importar. Fulminando-o com os seus olhos verdes, ela o desafiou mostrando o punho fechado: como se atreve, Simone? Como tem coragem de roubar o nosso santo? O cavaleiro respirou fundo ao ser acusado pelo próprio nome. Mais uma vez, desejou que o prefeito tivesse contratado guerreiros de outra cidade para fazer aquele trabalho sujo. Simone girou e galopou até a porta da igreja. Os guardas estavam agora com o caixão e arrancavam de cima dele o último frade, pequeno como um menino, que se agarrava a ele com toda a sua força. Por causa do seu tamanho, o cavaleiro presumiu que aquele deveria ser Leo, o anão. Após cercar a caixa de madeira, os homens de Giancarlo postaram-se atrás de Simone, enquanto os membros da igreja atiravam-lhes uma saraivada de pragas e maldições. O cavaleiro apeou e atirou as rédeas para um dos guardas.

Você vai arder no fogo do inferno, Simone!, vociferou alguém bem perto do seu ouvido. Ele se virou e ergueu a espada, mas o bispo de Assis levantou a cruz que levava ao pescoço para fazê-lo parar. Mordendo o lábio inferior, Simone abaixou a cabeça para entrar na igreja. O prefeito veio juntar-se a ele em seguida. Bem no portal da entrada, o mercador de lã estava à espera, ao lado do castelão da comuna de Todi. Ponham o ataúde no chão, ordenou Giancarlo aos seus homens. Depois, mandou que fossem para fora, defender o pátio. Assim que os guardas saíram, ele e o cavaleiro fecharam a porta com uma barra pesada de madeira que ia de um lado a outro. O prefeito encostou-se no painel entalhado, ofegante, enquanto Simone levantava o elmo e secava a testa com a manga de seu gibão de couro acolchoado. Foi somente quando o cavaleiro repôs a espada bainha que notou vestígios de sangue ressecado na lâmina. Cada vez pior, pensou, sombrio». In John Sack, A Conspiração Franciscana, 2005, Edição O Quinto Selo, 2006, ISBN 978-989-613-048-0.

Cortesia de EQuintoSelo/JDACT

JDACT, John Sack, Itália, Literatura, Conhecimento,

O Crime dos Illuminati. 1787. César Vidal. «Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras. Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela frente exactamente?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Baviera, 1797

«(…) Mas..., repetiu Koch, tentando ajudar o clérigo a continuar o seu relato. Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: estupendo, estupendo, o que eu pensava. Estupendo, estupendo, o que eu pensava, repetiu Koch sem tirar os olhos do clérigo. Isso, ele disse isso. Estupendo, estupendo, o que eu pensava. Então me avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro tempinho e me disse: sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado da sua igreja acaba de desabar. Uma desgraça, pensou em voz alta Koch. E como, e como! O senhor poderia jurar, disse com os olhos abertos como pratos o sacerdote. Naquele momento, é claro, eu tentei me levantar, partir, ir embora. O senhor me diga. Com a paróquia em ruínas, que outra coisa eu podia fazer? Koch concordou mas não abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar ou estava prestes a chegar ao cerne da questão. Mas quando tentei me levantar, esse..., esse Lebendig pôs a mão no meu ombro e me disse: padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva alguma coisa. E o senhor escreveu? Claro..., claro que sim. Não vou esconder. Escrevi. E então..., aí vem o pior... O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo tempo era que lhe lançava uma baforada de álcool que o policial achou insuportável, disse: ele leu o que eu tinha escrito e disse: o que eu imaginava. O senhor ouviu? Ele disse: o que eu imaginava! Naturalmente, eu aproveitei que ele estava lendo o papel para começar a correr até à minha paróquia... Naturalmente, concordou Koch. Bem, pois cheguei à minha paróquia e o senhor sabe o que estava acontecendo? Não faço a menor ideia, respondeu o policial. Pois nada, disse o clérigo, nada. Nada! A igreja estava como sempre esteve. Sem uma rachadura.

Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras. Naturalmente, toda a história podia ser falsa, mas, se não fosse, o que ele tinha pela frente exactamente? Uma zombaria com a religião? Não, ninguém tinha perpetrado qualquer escárnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo contrário. O padre em questão era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a história do tecto da paróquia era falsa, mas isso não podia ser considerado um crime. Noutras circunstâncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, acto contínuo, teria tratado de arquivá-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era uma personagem peculiar, tão peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita, que caracterizava a tranquila cidade de Ingolstadt. Não se preocupe, padre, disse por fim. Dê-me o endereço dessa personagem e eu, pessoalmente, vou-me ocupar de perguntar o que houve. Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clérigo quando ouviu aquelas palavras. Sem dúvida, já estava quase convencido de que ninguém o atenderia. E agora, agora aquele policial tão atencioso, tão ponderado, tão diligente ia lhe dar atenção. Foi embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso entrando na primeira taberna que cruzou o seu caminho.

Koch não agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi até à casa do tal Lebendig. Ele morava num prédio não muito antigo de uma área quase próspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, a sua casa estaria numa área invejável. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt. O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prédio, depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, não exactamente agradável, invadiu as suas narinas enquanto subia os degraus. Não se poderia dizer que a escada estivesse suja, mas Koch teve a sensação de que aquele lugar não contava com toda a limpeza necessária. Era como se os vizinhos não tivessem um interesse especial em manter a dignidade, embora também não se pudesse acusá-los de sujos. Sem deixar de olhar as paredes e os degraus, chegou até ao andar onde o padre tinha dito que aquele estranho indivíduo morava.

Herr Lebendig?, perguntou quando abriam a porta. Sim, herr, respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de cabeça. Gostaria de vê-lo, disse Koch num tom correcto, mas que deixava claro que não aceitaria uma negativa. Espere, bitte, disse a mulher enquanto fechava a porta. Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a hipótese de que alguém quisesse fugir à acção da justiça. Ao fim de alguns instantes, a porta voltou a se abrir, confirmando o seu ponto de vista. Entre, bitte. A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. Não era estreito demais e também não estava mal iluminado, mas num dos seus lados estava apoiada uma estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia querer tantos livros? E, sobretudo, como é que o padre não lhe tinha dito nada a respeito?» In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Ediouro Publicações S.A., 2006, Relume Dumará, 2007, ISBN 978-857-316-491-6.

Cortesia de Relume Dumarã/EdoouroPublicações/JDACT

JDACT, França, César Vidal, História, Conhecimento, Literatura,

Raymond Bernard. As Mansões Secretas da Rosacruz.. «Maha me precede e nos sentamos, um frente ao outro, numa elegante mesa rectangular. Maha parece esperar que eu fale. Isso me surpreende, mas decido-me…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Amsterdão

«(…) Estranha cidade onde paira a sombra de Rembrandt, onde envelhecem sem envelhecer os históricos canais, onde o mar obstinado vem morrer contra o dique da obstinação humana, cidade de tradição que um grande mestre da Rosacruz do passado, Gustave Merinck, atravessou com as suas lembranças, jamais o fluxo cosmopolita dos negócios que a invadem apagará a história que impregna os muros veneráveis de teus bairros antigos e mesmo que, em algum dia lúgubre, a Natureza em cólera te submergisse para sempre nas ondas torturadas do adversário, o sábio perpetuaria tua lembrança no templo sagrado da secreta sabedoria! Nobre cidade que se faz tristeza para o triste, alegria para o alegre, corrente para o escravo ou liberdade para o livre, tu esposas as aspirações de teu visitante e sabes até ser decepção para o decepcionado! Oh, como eu queria que o adepto verdadeiro, do lado de cá do presente, perscrutasse a eterna presença de todos aqueles que deixaram em ti a marca da alta sabedoria, pois não reservas teus segredos apenas para o clarividente que, com um olhar, apaga o inelutável moderno para melhor ver adiante! Para mim, já eras riqueza abrindo teus cofres repletos de jóias de alquimia. Agora, és mais ainda para mim, porque doravante associo Maha à tua lembrança...

O Hotel Carlton, de Amsterdão, fica próximo do centro da cidade e dá para uma rua movimentada, do lado de arcadas cuja razão de ser nos intriga. À minha chegada, fico sabendo que, contrariamente ao que me assegurou a minha agência, nenhum quarto foi reservado em meu nome. Diante da importância do encontro marcado neste hotel, chamo a agência de Paris ao telefone. Conseguirei a ligação... Após uma hora de espera e, mal terminei, o recepcionista precipita-se na minha direcção para me informar que minha reserva foi encontrada e que um quarto estará à minha disposição…, amanhã! Como o meu encontro está marcado para as dezassete horas, não protesto, e o porteiro encontra-me facilmente um quarto para a noite no Hotel Suíço, na Kalverstraat Nem mesmo abrirei minha bagagem, tanto me apresso em voltar ao local do esperado encontro. No dia seguinte, ao meio-dia, estou instalado no Hotel Carlton e, às 16h30min, estou sentado no pequeno hall, os olhos fixados na porta que deve, daí a pouco, trazer Maha.

Ei-lo! Vejo-o transpor a grande porta envidraçada... Aí está ele diante de mim, e eu diante dele, que permanece de pé, sem me dar conta de que devia fazer um esforço para levantar-me. Como é impressionante sentir, de repente, que se está em algum lugar sem lá ainda estar, que um mundo nos cerca e que não percebemos mais nada..., mais nada, a não ser uns olhos de extrema palidez, nos quais todo o nosso ser se abandona, não para esquecer, mas para conhecer..., e viver! E esse sorriso de uma infinita bondade..., um encorajamento, um apelo à confiança, à humildade, à simplicidade! Em alguns segundos irrompem na minha consciência as impressões passadas: Lisboa... Istambul, a cripta deslumbrante. Tudo é uma coisa só. Quanto tempo dura este estado? Alguns segundos, menos ainda..., eu sei e, afinal, que me importa? Podem noções como o tempo e o espaço ter significado diante da eternidade simbolizada por esse que aí está? Ele não faz nenhum gesto e não dá o sinal que, há algum tempo, eu aguardava. Concluo que nosso encontro não se situará no plano anterior, onde tantas explicações me foram transmitidas sobre a obra do Alto Conselho, do A... Não obstante, aguardo ainda alguma nova revelação. O campo é tão vasto que só um guia esclarecido pode definir seus contornos. Mas não sinto nenhuma curiosidade especial, pois o estado transcende nosso miserável intelecto... Este lugar não convém ao propósito de nosso encontro, diz Maha após alguns instantes. Venha.

Sem uma palavra, eu o sigo. Ele avança até a extremidade da calçada, um carro pára a alguns passos e, mal nos instalamos, parte, silencioso, para o seu destino... Reconheço alguns canais, depois a Leidersplein. Atravessamos a ponte, viramos à esquerda e..., nem olho, mais, pois estou completamente perdido. Conheço bem Amsterdão, mas infinitamente menos seu subúrbio. No entanto, reconheceria a esplêndida residência que nos acolhe. Moradias como esta são raras demais para serem esquecidas. Esta não tem aspecto pesado. Fica situada no coração de um parque verdejante, cujo brilho é realçado pela densa folhagem colorida, e a sua estrutura de tijolos claros lhe confere um vínculo de parentesco com alguns edifícios do subúrbio de Londres. Andamos alguns passos do carro até um pequeno patamar, de onde se tem acesso a um amplo vestíbulo despojado: nas paredes, nenhum quadro; no ângulo oposto, um móvel chinês finamente gravado; no centro, uma mesa baixa e duas elegantes poltronas de estilo; nada mais que possa chamar particularmente a atenção. À esquerda, uma grande porta envidraçada e uma minúscula sala de visitas tão despojada quanto o vestíbulo.

Maha me precede e nos sentamos, um frente ao outro, numa elegante mesa rectangular. Maha parece esperar que eu fale. Isso me surpreende, mas decido-me: um tempo relativamente curto se passou desde o insigne privilégio que o senhor me concedeu, permitindo-me conhecer sua existência e a do Alto Conselho». In Raymond Bernard, As Mansões Secretas da Rosacruz, 2005, Editora Zéfiro, 2005, ISBN 978-972-895-8008.

Cortesia de EZéfiro/JDACT

JDACT, Raymond Bernard, Literatura, Mistério,

terça-feira, 22 de setembro de 2020

As Mansões Secretas da Rosacruz. Raymond Bernard. «Revi Maha e, apenas a esta lembrança, a sua imagem me parece muito próxima; tenho a sensação, sem igual, da sua presença e meu ser estremece com a emoção habitual…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Maha

«Revi Maha e, durante nossos encontros em Amsterdão e Viena, não pude evitar, enquanto o esperava, de pensar na volumosa correspondência recebida dos leitores de Encontros com o Insólito. Maha os impressionara e, ao ler tantas cartas, eu sentia a certeza de que, se minha descrição tivesse podido acompanhar, um pouco que fosse, a inolvidável impressão que emana desse ser extraordinário, a descrição, por si só, seria suficiente para comunicar aos outros as emoções que eu sentira. Parecia que, no momento da leitura, um vínculo subtil se estabelecia entre os leitores e Maha. Para muitos, ele não era mais apenas verdadeiro; passava a ser a sua verdade, aquela que está escondida no mais profundo de cada ser e que, às vezes, sob o estímulo imprevisto de uma narração, se eleva, gloriosa, diante de uma consciência deslumbrada. A verdade é uma, sob os múltiplos aspectos de que se reveste no mundo do fenómeno, e é quase um lugar-comum declarar que ela está em cada um de nós. Ora, seres como Maha situam-se no plano da verdade pura, e esse plano está em acordo com o universo da permanência que o homem traz para sempre em si próprio. Assim, não me surpreendia absolutamente constatar que alguns não viam em Maha um estranho, mas, ao contrário, digamos uma noção conhecida, encontrada com toda a sua força e seu vigor em si próprios, como se, de repente, as palavras, as frases, a narração os fizessem tomar consciência de um vínculo jamais rompido. Além disso, a missão planetária do Alto Conselho, do A..., diz respeito a todos os homens. Que existe de surpreendente que alguns tenham podido, por breves instantes, comunicar-se com tais representantes e pôr-se no mesmo diapasão do mais alto deles?...

Revi Maha e, apenas a esta lembrança, a sua imagem me parece muito próxima; tenho a sensação, sem igual, da sua presença e meu ser estremece com a emoção habitual, jamais embotada por este excepcional contacto. Não sei se vocês observaram, nos Encontros com o Insólito, que ele me parecia ter uns quarenta anos, nos retratos que eu observara em Copenhague e em Lisboa. Quando o vi pessoalmente, pela primeira vez, supus que chegara aos cinquenta, e esta impressão subsistiu em Istambul. No entanto, na incerteza, nada mudei na minha narração. Em Amsterdão, pareceu-me mais jovem, em Viena, mais idoso. Não sei como o encontrarei, dentro em breve, em Lisboa, em Madrid e, um pouco mais tarde, em Atenas. Talvez que, terminando esta obra pela descrição destes novos encontros, o que terei a dizer me faça esquecer uma descrição inoportuna! Contarei aqui, de novo, a minha impressão totalmente subjectiva. Se me pedissem para descrever Maha, seria tentado a responder: Ele tem olhos, e verdadeiramente não posso, mesmo agora, usar de mais precisão sem correr o risco de cometer o erro de uma explicação falsa. Creio que os olhos de Maha reflectem um mundo, um universo. Ele poderia comunicar-se unicamente com o olhar e, apesar da infinita bondade que deles emana, as preocupações talvez dêem à pureza dos seus olhos claros uma expressão diferente; de forma que, segundo as circunstâncias, parece ter mais ou menos idade. É, parece-me, a explicação da impressão que dá quanto à idade. Além disso, que podem significar noções como o aspecto físico ou o comportamento externo para semelhantes seres! Para eles, isso não tem interesse e, para quem tem o privilégio de ter-se encontrado com eles, poderia haver outra inalterável lembrança que o facto de ter estado na sua presença, no seu meio magnético e de ter ouvido a sua mensagem... a mensagem!

Creio ser útil fazer aqui uma advertência que estava implícita nos Encontros com o Insólito. Houve, antes da última guerra mundial e, depois dela, até por volta dos anos 50, um personagem bizarro que se atribuía o nome de Maha Chohan. Falou-se dele na França e nos Estados Unidos, onde a imprensa lhe dedicou alguns artigos irónicos. Esse pseudo-rei do mundo não pretendia nada menos que pôr a mão em organizações tradicionais autênticas, por motivos dificilmente confessáveis. Foi rapidamente desmascarado e enviado de volta às suas quimeras; mas, tão curioso quanto pareça, conservou alguns discípulos iludidos. Dele, de qualquer modo, ninguém mais fala. Naturalmente, não há nenhum termo de comparação entre o pseudo-Maha Chohan e o autêntico Maha. O rei do mundo não procura, seguramente, nenhuma publicidade e não se expõe à multidão sobre um estrado, sustentado por artigos e comunicados. Poucas pessoas encontraram Maha sabendo que ele era Maha. O chefe do Alto Conselho dissimula sua identidade verdadeira e sua função. Ele não trombeteia a sua santa condição como o fez esse aventureiro do oculto de que falamos, paramentando-se de uma qualidade prestigiosa e recolhendo, aliás, como fruto de sua audácia, mais que a reprovação, o ridículo. Revi Maha... Maha apenas e, de repente, revi novamente o contacto de Amsterdão, depois o de Viena, esperando, para breve, Lisboa, Madrid, Atenas enfim...» In Raymond Bernard, As Mansões Secretas da Rosacruz, 2005, Editora Zéfiro, 2005, ISBN 978-972-895-8008.

Cortesia de EZéfiro/JDACT

JDACT, Raymond Bernard, Literatura, Mistério,