«(…) Sigrid conteve decididamente a intenção de contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que plantavam acabava-se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com a solução. Ela havia falado rápido e em voz baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz.
O rei, primeiro, pareceu ficar
surpreso. Ele mal estava acostumado a que os homens à sua volta falassem com
ele direto e sem os cerimoniosos rodeios habituais. Muito menos as mulheres. Você
é uma mulher abençoada em muitos aspectos, minha cara Sigrid, disse ele,
finalmente, com palavras lentas e pegando de novo a mão dela. Amanhã, quando já
tivermos dormido no castelo depois do banquete de hoje, irei chamar o padre
Henri e aí vamos resolver toda essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não
ficará bem continuarmos aqui nós dois, sentados durante muito mais tempo a
sussurrar.
De um momento para o outro, ela
tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma mulher,
poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei jamais
poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais poderia
desfazer. Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se recuperou
um pouco. O Espírito Sinto podia, portanto, ser prático, e os caminhos do Senhor
nem sempre eram tortuosos. Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois
dias de marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe
da residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na
margem leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava
o de Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais
nova e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar
lá o tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem
para chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de
Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca conseguiram
chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do problema com a
calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher.
Arnäs precisava ser reequipada e
reconstruída. Mas estava localizada numa área-limite, ao longo da floresta, sem
donos, onde havia muitos terrenos livres e outros pertencentes ao rei, com
possibilidades de negociação ou compra. Nessa propriedade muita coisa poderia
ser mudada para melhor, em especial se servos e ferramentas fossem transferidos
de Varnhem. Não foi exactamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o
assunto quando fez a Sua aparição perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava
bem clara, uma manada de cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que
lembravam a madrepérola. Os cavalos haviam chegado, correndo na sua direcção,
perto de uma lagoa com muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as
caudas desdenhosamente levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis
como gatos. Era um prazer vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos
selvagens nem cavalos sem dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por
trás dos cavalos brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando
num cavalo prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente
levantada. Ela conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele
portava escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer
como sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo
era totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais.
O jovem refreou o seu cavalo bem
junto dela e falou com ela, e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas
ao mesmo tempo não entendeu nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse
significava que ela teria de dar a Deus um presente, que, no momento, era a
atitude mais necessária, neste condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar
um bom lugar para os monges de Lurõ. Mais tarde, ela observou bem os monges, à
medida que saíam lentamente, após a sua longa apresentação. Não pareciam nem um
pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia mais
como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um
entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora,
estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham conversado
por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que muitos deles
exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era enrugada no
rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ,
qualquer um podia ver isso, e o inverno, certamente, não lhes fora muito benigno.
Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que conseguiam
cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para trabalhar.
E Varnhem era um lugar muito bom». In Jan Guillou, As Cruzadas, A Caminho de
Jerusalém, 1998, Bertrand Editora, 2003, ISBN 978-972-251-375-3.
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