quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Frei António Pádua, meu compatriota e filho de um ilustre cavaleiro da Ordem de Santiago, era lente de Teologia na Universidade paduana e agora secretário-geral…»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) ... revolvendo tais coisas no meu espírito, eis-me sentado olhando este mar cor de vinho e a sua querida Cila e Caribdis e este perigosíssimo estreito, sofrendo por ficar, chorando por não poder partir, não sabendo que fazer ou para que lugar da terra vá. (J. Lascaris, ín Iriarte, Regiae Biblíotheca Mati-itetisis Códices Graeci) já me não recordo bem se foi em Roma se em Veneza que até Mim chegou a espantosa notícia de que mestre Jacob, muito ao contrário do que em Portugal se cuidava e eu próprio pensava, estava Vivo algures em terra do Mediterrâneo oriental. Quem mo noticiou foi uma velha judia... Ah!, sim, lembro-me agora... Fo na ilha de Ortu, numa sinagoga onde eu e frei António Zedilho tínhamos entrado para... Não foi em Roma nem em Veneza. Em Roma não podia ser, claro. Roma, afora alguns poucos factos que contarei com brevidade, representou uma rotina burocrática e uma transição para tudo o que depois sucedeu. Cheguei à cidade leonina, que agora se chama Vaticano, depois de uma trabalhosa viagem de três meses por terras de Espanha, França e Itália, de cujos pormenores não dou agora crónica, por ir direito ao assunto e me não dispersar. Registarei no entanto a minha inesquecível entrada em Itália, vindo de Avinhão e transpondo os Alpes debaixo de um intenso nevão que a tudo estendeu seu alvo e silendoso manto, até sobre as orelhas do meu burro. Não é pequeno privilégio estar um pobre franciscano português, o menor dos menores, na cidade de Roma, colocado junto da Cúria que aí reside para os negócios importantes da ordem, como companheiro do procurador-geral, frei António Pádua. Não o é menos quando este procurador-geral é secretário de frei Francisco Zamora, comissário-geral de toda a ordem. Tais nomes e personalidades sobremaneira me confundiam e tornavam inexplicável a minha escolha para o cargo. Frei Francisco Zamora era um dos mais doutos teólogos da Espanha, que Pio IV acabava de nomear padre do Concílio recentemente convocado para Trento, onde ia presidir à Congregação dos Teólogos. Frei António Pádua, meu compatriota e filho de um ilustre cavaleiro da Ordem de Santiago, era lente de Teologia na Universidade paduana e agora secretário-geral. Estes factos, sem que o eu merecesse, davam-me natural notoriedade, assim como me possibilitavam conhecer muitos dos meus confrades da grande família franciscana espalhada pelo mundo, pois que me incumbia a mim em primeira mão recebê-los e ouvi-los. Não justificavam todavia, em meu entender, a assiduidade com que era procurado e visitado pessoalmente por ilustres membros de outras ordens, dominicanos, agostinianos e outros, que para tratar dos seus assuntos tinham como nós junto da Cúria os seus representantes, nem tão-pouco a escolha que sobre mim recaiu, algum tempo depois, para acompanhar a Jerusalém o guardião da Terra Santa.

Corria o ano de sessenta e um, estavam chegando de toda a parte os padres conciliares, o escol dos teólogos, embaixadores e ministros da Cristandade, uns alardeando luxuosa grandeza, fazendo-se acompanhar de principescas representações, outros escondendo a grandeza e santidade da alma, a sabedoria do espírito, com ser acolitados da escassa e indispensável comitiva. Eram paradigmas destes dois casos, no que tocava aos portugueses, por um lado o bispo de Coimbra, frei João Soares, por outro frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, primaz das Espanhas. Ao primeiro já eu o conhecia, de modo que logo o identifiquei quando, com grande espanto meu, ele me entra pela porta adentro, estava eu descuidado conferindo uns papéis. Lembrava-me de o ter visto, ainda não era bispo, como membro do Santo Ofício (maldito), em Évora. Esteve até presente na cerimónia da minha prima tonsura. Era um homem de delicado e agradável parecer e de um tão esmerado asseio que logo se via tinha a preocupação de cuidar da sua pessoa. Quando me inclinei a beijar-lhe o anel senti-lhe o perfume da mão. Vossa reverendíssima aqui? O comissário-geral já partiu para Trento!...

É a vós que procuro, frei Pantaleão!, disse ele sorrindo. Falava suavemente, adocicadamente, e as palavras eram rebuscadas: não queria privar-me, sabendo-me saudoso da pátria, como era natural a todos os êxules, de me trazer um poucachinho do ar do nosso Portugal E fazia-o nas boas palavras portuguesas, no recorte da frase, no jeito do olhar, do sorrir e do sentir. Dava-me novidades da terra, mas algumas já eu as conhecia. As mais importantes, como era óbvio em bispo tão palaciano, diziam respeito à corte: a morte súbita de João III, a regência da viúva, dona Catarina, na menoridade de Sebastião, as indecisões acerca dessa regência e da educação do príncipe, a nomeação de Constantino Bragança como vice-rei da Índia... Via-se que tinha gosto em mostrar o seu trato pessoal com os grandes do reino, numa atitude de puro narcisismo, e, enquanto me dizia faleceu o senhor dom Jorge, duque de Coimbra, filho de João II, eu ia pensando que precisamente esse facto tornava ainda de mais difícil explicação aquela visita». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,