Roma... Veneza... Trento
«(…) Recomendar-me-ia ao
comissário-geral, disse ao retirar-se. Cheguei à janela. Ainda tenho nos olhos
a imagem daquela elegantíssima sotaina vermelha, o solidéu lustroso na cabeça
bem penteada, a brancura da face e das mãos, o anel grande a rebrilhar no dedo.
Tudo relevando no negro cabedal do assento em que se recostava, na linda
carruagem puxada por dois cavalos brancos, com cocheiro e lacaios de libré, a
portinhola que se fecha mostrando o brasão e as armas, parecendo dizer: é assim
que anda em Roma um bispo-conde português!
A segunda visita, tempos depois, já
o Concílio discutira as primeiras cláusulas e tomara as primeiras decisões, não
foi menos extraordinária. Na verdade quem haveria de dizer que aquele humílimo
frade dominicano que ali surgia diante de mim era nem mais nem menos que o já
tão falado arcebispo primaz frei Bartolomeu dos Mártires? E se o hábito que
trazia era de pano novo, foi porque lho impuseram, com sua grande
contrariedade, os seus servidores. Para o efeito, sabendo frei João Leiria que
o arcebispo por humildade só gostava de trazer roupas velhas e coçadas, e que,
quando lhe ofereciam algum pano novo, chamava à socapa um alfaiate seu
conhecido e mandava-lhe fazer vestuário para os seus pobres, teve mão, antes
que se partisse para Itália, de um estratagema de que frei Bartolomeu não podia
fugir: mandou-lhe fazer hábitos, sem lhe dar conta nem preceder medida, e
ordenou aos que estavam incumbidos da sua câmara lhe retirassem os velhos e em
seu lugar deixassem os novos. Era este dominicano que se não sentia bem em
vestido novo quem ali estava na minha presença e eu não o conhecia, embora
soubesse dele muitas coisas: que havia sido mestre de artes no Colégio de
Lisboa e professor de Teologia na Batalha; que tinha recebido grau de magister em Teologia na
cidade de Salamanca; que pela sua ciência e virtudes o escolhera o infante
Luís para preceptor de seu filho António, futuro prior do Crato; que fora
eleito prior do Convento de S. Domingos de Benfica e que, por falecimento de frei
Baltasar Limpo, arcebispo de Braga, a rainha dona Catarina, aconselhada por
frei Luís Granada, o indigitara para o arcebispado. Sabia ainda que ele havia
recusado a dignidade e só por instâncias prementes do provincial a aceitou,
pois tinha feito voto de obediência aos seus superiores, e que, tendo por essa
altura caído doente, fora convalescer para Azeitão, onde lhe chegaram de Roma
as cartas que o confirmavam arcebispo. Sabia eu tudo isto mas não o conhecia,
pois os nossos caminhos até aí nunca se tinham cruzado. Era alto e magro, bem
proporcionado, a cabeça grande, rosto comprido e seco, a alargar na testa ampla
que a calva rematava. Nariz direito levemente arrebitado, boca grossa, queixo e
lábio inferior salientes, e a dar vida a tudo isto, de maneira surpreendente,
os olhos pequenos, sumidos e estrábicos.
Abraçou-me
e pediu-me a bênção, como se fosse um simples leigo, e eu retribuí solicitando
a sua. Não sei a quem tenho a honra de falar, irmão, disse eu. Sou Bartolomeu
dos Mártires, frei Pantaleão. A minha estupefacção foi tão grande que por
momentos não consegui falar. Procurei-lhe assento e fiquei de pé. Não
consentiu, pondo-se imediatamente de pé também. Vossa reverendíssima aqui! E
conhece-me! Sabe quem eu sou!, exclamei, só depois de ter pronunciado a última
frase notando-lhe a ambiguidade. Falava-se muito, então, da sua rude
frontalidade nas respostas que dava sem olhar a quem, e corriam já algumas em
que era notável o despejo com que falava no Concílio sobre a necessidade de
reforma dos cardeais ou, nas suas conversas com o papa, acerca da pompa de que
se rodeia a Igreja. Mas se à primeira vista, e para quem não o conhecesse,
parecia esquivo e intratável, no entanto conversado ninguém era mais brando,
mais chão, mais facilmente humano e cristão. Dir-vos-ei, irmão, ao que venho,
disse ele, e desculpar-me-eis o tempo que vos tomo. Muito atrapalhado ainda e
confuso, balbuciei uma desalinhavada resposta em que me referia ao grande
incomodo e transtorno que certamente teria sido para tão eminente pessoa dispor
do seu tempo a visitar um tão humilde frade franciscano. Respondeu-me colhendo
de mais longe o pensamento: que nós, os padres, sabíamos bem como era serviço
de Deus o calar muitas coisas ou ajudar, calado, a alguma atribulação humana.
Alguém lhe pedira viesse junto de mim e me trouxesse seu recado. Não lhe
fizesse perguntas e tomasse aquela bolsa que continha com que prover minhas
necessidades quando eu fizesse peregrinação à Terra Santa». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT