Roma... Veneza... Trento
«(…) ... revolvendo tais coisas
no meu espírito, eis-me sentado olhando este mar cor de vinho e a sua querida
Cila e Caribdis e este perigosíssimo estreito, sofrendo por ficar, chorando por
não poder partir, não sabendo que fazer ou para que lugar da terra vá. (J.
Lascaris, ín Iriarte, Regiae Biblíotheca
Mati-itetisis Códices Graeci) já me não recordo bem se foi em Roma se em
Veneza que até Mim chegou a espantosa notícia de que mestre Jacob, muito ao
contrário do que em Portugal se cuidava e eu próprio pensava, estava Vivo
algures em terra do Mediterrâneo oriental. Quem mo noticiou foi uma velha
judia... Ah!, sim, lembro-me agora... Fo na ilha de Ortu, numa sinagoga onde eu
e frei António Zedilho tínhamos entrado para... Não foi em Roma nem em Veneza.
Em Roma não podia ser, claro. Roma, afora alguns poucos factos que contarei com
brevidade, representou uma rotina burocrática e uma transição para tudo o que
depois sucedeu. Cheguei à cidade leonina, que agora se chama Vaticano, depois
de uma trabalhosa viagem de três meses por terras de Espanha, França e Itália,
de cujos pormenores não dou agora crónica, por ir direito ao assunto e me não dispersar.
Registarei no entanto a minha inesquecível entrada em Itália, vindo de Avinhão
e transpondo os Alpes debaixo de um intenso nevão que a tudo estendeu seu alvo
e silendoso manto, até sobre as orelhas do meu burro. Não é pequeno privilégio estar
um pobre franciscano português, o menor dos menores, na cidade de Roma,
colocado junto da Cúria que aí reside para os negócios importantes da ordem, como
companheiro do procurador-geral, frei António Pádua. Não o é menos quando este
procurador-geral é secretário de frei Francisco Zamora, comissário-geral de
toda a ordem. Tais nomes e personalidades sobremaneira me confundiam e tornavam
inexplicável a minha escolha para o cargo. Frei Francisco Zamora era um dos
mais doutos teólogos da Espanha, que Pio IV acabava de nomear padre do Concílio
recentemente convocado para Trento, onde ia presidir à Congregação dos
Teólogos. Frei António Pádua, meu compatriota e filho de um ilustre cavaleiro
da Ordem de Santiago, era lente de Teologia na Universidade paduana e agora
secretário-geral. Estes factos, sem que o eu merecesse, davam-me natural
notoriedade, assim como me possibilitavam conhecer muitos dos meus confrades da
grande família franciscana espalhada pelo mundo, pois que me incumbia a mim em
primeira mão recebê-los e ouvi-los. Não justificavam todavia, em meu entender,
a assiduidade com que era procurado e visitado pessoalmente por ilustres
membros de outras ordens, dominicanos, agostinianos e outros, que para tratar
dos seus assuntos tinham como nós junto da Cúria os seus representantes, nem
tão-pouco a escolha que sobre mim recaiu, algum tempo depois, para acompanhar a
Jerusalém o guardião da Terra Santa.
Corria o ano de sessenta e um,
estavam chegando de toda a parte os padres conciliares, o escol dos teólogos,
embaixadores e ministros da Cristandade, uns alardeando luxuosa grandeza,
fazendo-se acompanhar de principescas representações, outros escondendo a
grandeza e santidade da alma, a sabedoria do espírito, com ser acolitados da
escassa e indispensável comitiva. Eram paradigmas destes dois casos, no que
tocava aos portugueses, por um lado o bispo de Coimbra, frei João Soares, por
outro frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, primaz das Espanhas. Ao
primeiro já eu o conhecia, de modo que logo o identifiquei quando, com grande
espanto meu, ele me entra pela porta adentro, estava eu descuidado conferindo
uns papéis. Lembrava-me de o ter visto, ainda não era bispo, como membro do
Santo Ofício (maldito), em Évora.
Esteve até presente na cerimónia da minha prima tonsura. Era um homem de delicado e agradável
parecer e de um tão esmerado asseio que logo se via tinha a preocupação de
cuidar da sua pessoa. Quando me inclinei a beijar-lhe o anel senti-lhe o
perfume da mão. Vossa reverendíssima aqui? O comissário-geral já partiu para
Trento!...
É
a vós que procuro, frei Pantaleão!, disse ele sorrindo. Falava suavemente, adocicadamente,
e as palavras eram rebuscadas: não queria privar-me, sabendo-me saudoso da
pátria, como era natural a todos os êxules, de me trazer um poucachinho do ar
do nosso Portugal E fazia-o nas boas palavras portuguesas, no recorte da frase,
no jeito do olhar, do sorrir e do sentir. Dava-me novidades da terra, mas
algumas já eu as conhecia. As mais importantes, como era óbvio em bispo tão
palaciano, diziam respeito à corte: a morte súbita de João III, a regência da
viúva, dona Catarina, na menoridade de Sebastião, as indecisões acerca dessa
regência e da educação do príncipe, a nomeação de Constantino Bragança como
vice-rei da Índia... Via-se que tinha gosto em mostrar o seu trato pessoal com
os grandes do reino, numa atitude de puro narcisismo, e, enquanto me dizia faleceu
o senhor dom Jorge, duque de Coimbra, filho de João II, eu ia pensando que
precisamente esse facto tornava ainda de mais difícil explicação aquela visita».
In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT