Cidade do México, 1649
«Na segunda-feira 11 de Março de 1649 uma procissão partiu do
quartel-general do Santo Ofício da Inquisição (maldita) na Cidade do México. A tropa de gala desfilou entre as
casas caiadas, animada por músicos vestidos com sedas coloridas que tocavam
trompetes, tímpanos e instrumentos de sopro. Os cavalos dos músicos eram
seguidos pelos dos sacerdotes do Santo Ofício (maldito) e pelos dos mais nobres cavalheiros da cidade. Os
religiosos portavam os brasões da Inquisição (maldita), que reflectiam justamente a luta entre a paz e a violência
que estava no cerne daquela curiosa instituição: uma cruz no centro, um ramo de
oliveira à direita e uma espada à esquerda. Ao final da procissão vinha dom
Juan Aguirre de Soaznavar, o principal encarregado da Inquisição no México. O
cortejo seguia pelas ruas de uma das duas mais importantes cidades da América,
anunciando com o estrondo dos tímpanos e dos instrumentos de sopro que um grande
auto de fé seria realizado num mês. Avisos haviam sido afixados nos edifícios
do Santo Ofício, na casa do arcebispo, diante do palácio do vice-rei, no
conselho da cidade e em várias ruas. Um mês era o tempo mínimo para preparar o
grande teatro do auto de fé. Foi construído um cadafalso de cerca de 37 metros
de comprimento por 24 metros de largura, em torno do qual foram erguidas oito
colunas de mármore, agrupadas em pares. Na pedra angular de um arco acima do
cadafalso havia um brasão com o escudo de armas real, e foi construída uma pirâmide
decorada com um escudo da fé. Havia pinturas de meninos tocando trombetas acima
da porta que levava ao cadafalso, e os prisioneiros seriam mantidos numa
estrutura encimada por uma cúpula. A arena era sombreada por velas de barco
fixadas em 43 troncos de aproximadamente 18 metros de altura, e trinta escadas
levavam aos apartamentos e outros edifícios, permitindo que o público
descansasse das exigências do auto de fé. O conjunto era esplendidamente
decorado com pendentes de veludo, tapetes e cortinas vermelhas, e havia tanta actividade
que as pessoas se congregavam todos os dias e ali permaneciam do alvorecer ao
anoitecer [...] elas admiravam tudo e sentiam que estavam assistindo a algo que
podia se perpetuar através dos tempos.
No
dia 10 de Abril, após um mês de obras agitadas, mais de 20 mil pessoas lotaram
a Cidade do México para assistir à procissão da cruz verde que anunciava o auto
de fé do dia seguinte. As ruas entre os gabinetes da Inquisição (maldita) e a
grande arena estavam cheias de palcos menores. As pessoas assistiam em bancos,
coches, balcões e janelas quando dom Juan Aguirre Soaznavar surgiu, às três e
meia da tarde, acompanhado de uma guarda de 12 homens, pajens e lacaios. Os
sinos de todas as igrejas e mosteiros da cidade tocavam enquanto a procissão
avançava. Os guardas estavam vestidos de verde e preto, as cores do império,
com galões de ouro e prata. Quando a procissão finalmente chegou à Plaza del
Volador, os soldados dispararam uma salva de tiros para celebrar, e vinte
frades dominicanos caminharam segurando velas brancas para, finalmente, receber
a cruz no cadafalso. Eram sete horas. A noite caíra sobre a cidade, mas havia
tantas velas que faziam parecer que era dia em todo o teatro. As velas eram tão
grossas que poderiam queimar durante dois dias. Foram entoadas orações no palco
e uma multidão encheu a Plaza del Volador. Todos os assentos estavam ocupados. Poucos
dormiam, imaginando as sentenças que seriam aplicadas aos condenados.
Contudo,
enquanto na cidade proliferava todo tipo de rumores, o Santo Ofício (maldito) [...] prosseguia
sua obra em silêncio. Dos gabinetes da Inquisição (maldita) foram
enviados dois padres para ouvir as confissões de 15 pessoas condenadas à morte
pela prática do judaísmo, apesar de terem sido baptizadas e declararem
professar a fé católica. Eram os chamados relaxados, termo que designava
aqueles que seriam entregues pela Inquisição às autoridades laicas para serem
executados. Todos os relaxados alegaram inocência e afirmaram serem bons cristãos,
menos um deles. A excepção era Tomás Treviño Sobremonte, um mercador itinerante
que admitira ser judeu. Como se negara a aceitar a fé cristã, no dia seguinte
seria executado na fogueira, enquanto os outros 14 relaxados obteriam a
relativa clemência do estrangulamento antes de serem queimados.
Às quatro da manhã chegou o
inquisidor-geral do México, Juan de Mañozca. Os sinos da catedral começaram a
tocar para lembrar ao gentio que o auto de fé era uma representação terrena do
Juízo Final. Além dos 15 relaxados, foram esculpidas efígies de 67 mortos para serem
queimadas no lugar de seus corpos pelas heresias que eles não estavam mais
vivos para expiar. As efígies vinham primeiro na procissão, seguidas por 23
caixas com as ossadas, que também eram queimadas. Então vinham os prisioneiros
sentenciados a penitências, como o açoite, a prisão, as galés e o confisco dos
bens, os reconciliados. Por último, os relaxados eram chamados para receber os
estandartes de suas condenações, que eram sambenitos [o hábito penitencial dos
prisioneiros] decorados com chamas e figuras de demónios; essas imagens
aterrorizantes também decoravam as mitras, os capuzes em forma de cone que os prisioneiros
usavam a caminho do cadafalso». In Toby Green, Inquisição, O Reinado do
Medo, 2007, Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-853-900-354-9.
Cortesia de EObjectiva/JDACT
Toby Green, JDACT, Literatura, Religião,