A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) É. Tenho a certeza de que
ela vai chegar, disse o professor, com aquele desejo de ser simpático que está
na natureza de certas pessoas. Porquê?, perguntou João Pedro. Elas chegam
sempre, sorriu o professor. João Pedro não gostou daquela previsão. Além de
achar que ela é filha do Al Capone, o que o faz dizer que ela vai chegar? Está
com pena de mim? O historiador ficou embaraçado com a agressividade dele. Não
queria ser mal interpretado... É um bocado irritante, quando uma pessoa está
preocupada, ouvir estranhos a dizer que não há razões para isso. E se houver? E
se ela tiver sido assaltada? Ou se sofreu um acidente e estiver na beira da
estrada, a sangrar? Neste país, da maneira que as pessoas conduzem é provável
que mais cedo ou mais tarde um maluco se espete contra nós e nos mande para o
hospital!
Com tamanha excitação, João Pedro
nem reparou que alguns convidados tinham regressado à mesa, já com os pratos
cheios. Uma amiga minha teve um acidente. partiu o fémur e a bacia, comentou Natália,
acabada de sentar e com o prato cheio de profiteroles, cobertos de gelado de
baunilha. Exasperado, João Pedro olhou-a. Depois levantou-se, irritado. Sabia
que fora desagradável com o homem, mas aquela despreocupação incomodava-o. O
que se passaria com Mariana? Uma estranha sensação invadia-o. A ausência dela
deixava-o desassossegado. Seria amor o que sentia? Estaria ele com tantas
saudades que um mero atraso dela o podia deixar assim? Mas o que se passara
entre eles era amor? E, nos dias que corriam, o que era amor? Sim, existira
intimidade; sim, havia sentimentos; mas era um namoro? As pessoas, hoje, já não
começavam namoro. Não havia o Momento Inicial, o Big Bang, o acto fundador.
Já ninguém pedia namoro a ninguém, como na sua adolescência, quando ia com as
raparigas ao cinema, ao Oxford de Cascais; ou a meio de um slow do Christopher
Cross, numa festa em casa dos amigos. Hoje, ia-se começando, devagar, com
prudência, um jantar aqui, um cinema ali, sexo, jantar, sexo, e depois as
pessoas descobriam que não havia mais ninguém, começavam a pensar que gostavam
da companhia e a coisa podia evoluir. Era a teoria geral dos namoros nestes
tempos. Será que Mariana verificava essa teoria? Não fazia ideia. Era cedo.
Ainda estavam na fase do ir andando.
Tinham-se conhecido uma noite, há
dez anos. Ele saíra do Van Gogo, uma discoteca pequena em Cascais onde iam nas
noites de sábado. Ele era um menino de Cascais. Colégio dos Salesianos, râguebi
no Cascais, noites no Van Gogo, no News, no 2001 à quinta ou ao domingo, nos
bares da velha cidadela. Eram quatro da manhã e estava bêbado. Numa ruela do
centro de Cascais, encostara-se a um carro e vomitara como um porco, expressão
que ele os amigos usavam para descrever o descontrolo da situação. A meio do
patético processo, alguém dissera: precisas de ajuda? Envergonhado, nem olhara
para ver quem era. A voz era feminina e ele odiava ser visto naquele estado por
raparigas. Tentara recompor-se, mas o braço fugira-lhe e caíra no chão, de
joelhos. O mundo andava-lhe à roda. De súbito, sentira a cabeça refrescar e
ouvira: pronto, já passou. Mariana tinha colocado a mão na sua testa,
ajudando-o a recuperar o controlo. Tinha-a conhecido nessa noite, na festa de dezoito
anos do Francisco. Pouco tinham falado. Ela tinha quinze anos, era magricela, e
apesar de bonita não era ainda a mulher que viria a ser. Chamara um táxi para
ele. Só se recordava do sorriso de Mariana, quando ela fechou a porta do carro
e lhe desejou: as melhoras.
Do episódio ficara-lhe o
simbolismo: ela ajudara-o a sair da ruína em que estava, como se tivesse
poderes de salvação. Só uns anos mais tarde se voltaram a ver. Destinos, grupos
de amigos que se cruzam: um amigo dele namorara uma amiga dela. Porém, nessa
época Mariana não aparecia muito, pois tinha a mãe doente. Aos vinte e dois
anos, aquilo não lhe parecera importante, e nem foi ao enterro quando a senhora
morreu. Seis meses depois, cruzara-se com Mariana uma noite no Plateau e
dissera-lhe: um beijinho pela tua mãe. Obrigado, respondeu ela a sorrir. Seis
anos haviam passado desde essa noite no Plateau. Era assim entre ele e Mariana.
Momentos ocasionais de proximidade e longos períodos de afastamento. Tinha
sabido dela quase sempre por acaso. Mariana fora estudar para Londres, onde o
pai tinha uma casa. Correu o rumor de que se metera nas drogas e de que tivera
uma depressão». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya,
BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.
Cortesia de Leya/BIS/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Templários, Literatura, Conhecimento,