O Banquete dos Sábios
«(…) Contudo, ao contrário do que
poderia se esperar, os 72 não f oram levados ao Museu para executarem sua obra,
e sim acomodados na ilhota de Faro, a sete estádios da cidade. A cada passo que
avançava o trabalho, era Demétrio que ia até eles, com um pessoal adequado,
para levar a cabo a transcrição definitiva das partes traduzidas e acordadas.
Em 72 dias, os 72 intérpretes concluíram a tradução.
Na Gaiola das Musas
Dentro do Museu, porém, a vida não era nada tranquila.
Na populosa terra do Egipto, escarnecia um poeta satírico da época, são criados
uns garatujadores livrescos que se bicam eternamente na gaiola das Musas. Timão,
o filósofo céptico a que se devem tais palavras, sabia que em Alexandria, diz
ele vagamente no Egipto, encontrava-se o fabuloso Museu: chama-o de gaiola
das Musas, referindo-se justamente à aparência de pássaros raros,
distantes, preciosos, de seus moradores. Deles diz que são criados, referindo-se
também aos privilégios materiais concedidos pelo rei: o direito às refeições
gratuitas, o salário, a isenção de impostos. Chamava-os de charakitai, querendo dizer
que fazem garatujas em rolos de papiro, com um deliberado jogo de palavras com charax, o recinto, onde
aqueles pássaros de viveiro de luxo viviam escondidos. E para demonstrar que eram
dispensáveis, que todo o mistério e a reserva que os circundava na realidade
encobriam o vazio, o nada, Timão desdenhosamente dizia a Arato, o poeta dos Fenómenos que costumava frequentá-lo,
que usava as velhas cópias de Homero, não aquelas agora corrigidas, referindo-se
ao esforço dedicado por Zenódoto de Éfeso, o primeiro bibliotecário do Museu,
ao texto da Ilíada e
da Odisseia. Por exemplo,
no verso 88 do livro quarto da Ilíada,
Zenódoto mudava o texto no ponto em que fala de Atenas misturando-se aos
heróis troianos, Pândaro igual aos deuses procurando, se jamais viesse a
encontrar, por lhe parecer impossível falar de uma deusa que se esforça em
encontrar o objecto que procura. No livro primeiro, propusera eliminar os
versos 4 e 5, os famosos versos da medonha refeição de cães e pássaros, por
alguma outra razão que, por sorte, não pareceu convincente a ninguém além dele.
Timão não estava totalmente errado em se sentir enfastiado com tudo isso. Naturalmente,
não era só esse tipo de excêntricas intervenções que os ocupava. Classificavam,
dividiam em livros, copiavam, anotavam, enquanto o material crescia incessantemente,
e eles próprios, com seus volumosos comentários, contribuíam para aumentá-lo.
Poucos conheciam a f undo a biblioteca em todas as suas partes e artérias. Num dos
periódicos concursos poéticos promovidos pelos Ptolomeus, já se estava na época
do Evergeta, foi preciso acrescentar um sétimo juiz ao júri; o soberano
recorreu aos expoentes máximos do Museu, e eles lhe revelaram a existência de
um douto chamado Aristófanes, originário de Bizâncio, que, disseram-lhe, todo
dia, o dia inteiro, não fazia outra coisa além de ler e reler atentamente todos
os livros da biblioteca, seguindo pela ordem. Ordem que, portanto, Aristófanes
conhecia perfeitamente. O que se viu logo depois, quando, para desmascarar
alguns poetas plagiadores que estavam prestes a conquistar os melhores prémios,
abandonou a sessão do júri e, confiando na sua memória (assim explica Vitrúvio,
ao narrar o episódio), foi directamente a algumas estantes bem conhecidas a ele,
e pouco depois reapareceu, brandindo os textos originais que aqueles
plagiadores haviam tentado impingir como seus.
Calímaco tentou uma classificação geral, com seus Catálogos subdivididos por géneros,
correspondentes aos outros tantos sectores da biblioteca: Catálogos dos autores que brilharam em cada
disciplina, tal era o titulo do enorme catálogo, que sozinho
ocupava uns 120 rolos. Esse catálogo dava uma ideia da ordenação dos rolos. Mas
certamente não era uma planta ou um guia, que só muito mais tarde, na época de
Dídimo, seriam compilados. Os Catálogos
de Calímaco serviam apenas a quem já tivesse prática. E, mesmo assim, por
se basear no critério de arrolar somente os autores que haviam brilhado nos
diversos géneros, o repertório de Calímaco devia representar uma selecção,
ainda que imensa, do catálogo completo. Épicos, trágicos, cómicos,
historiadores, médicos, retóricos, leis, miscelâneas são algumas das
categorias: seis secções para a poesia e cinco para a prosa. Aristóteles
pairava entre aquelas estantes, entre aqueles rolos bem-ordenados, desde que
Demétrio ali transplantara a ideia do mestre: uma comunidade de doutos isolados
do mundo exterior, guarnecida de uma biblioteca completa e um local de culto às
Musas. A ligação se fortalecera com a longa permanência de Estrabão na corte. O
método e o génio do Estagirita, escreveu um douto francês, presidiam a distância
à organização da biblioteca. Mas eram justamente as estantes destinadas a
conter suas obras que davam pena de ver: praticamente apenas as obras
divulgadas por Aristóteles em vida, se é que simplesmente não se insinuava
alguma falsificação que depois seria dificílimo desalojar». In Luciano Canfora, A Biblioteca
Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, 1986, Companhia das
Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Egipto, Literatura, Luciano Canfora, Conhecimento,