sábado, 31 de outubro de 2020

No 31. Recensões. Inês Lourenço «Também há as outras, que ao certo não sei o que fazem, mas que ainda debutam aos dezoito anos ao som de O Danúbio Azul, com reportagem na imprensa rosa»

Cortesia de wikipedia e jdact

Coisas que Nunca

A poesia como lâmina implacável do tempo

«As raparigas da Foz há muito deixaram

de enlaçar os bilros sobre as almofadas.

Já não imitam nos meandros da renda o desenho

das ondas. Nem esperam, rodeadas de filhos pequenos

 

O regresso do seu modesto ulisses. Hoje

trabalham na pizzaria ou servem pregos e finos

na esplanada. Com um pouco de sorte fazem

um Curso de Gestão ou de outras ciências

ocultas para gáudio da família que as vai

ver desfilar no Cortejo da Queima e noutras

praxes saloias que a turba não dispensa.

 

Também há as outras, que ao certo não

sei o que fazem, mas que ainda debutam

aos dezoito anos ao som de O Danúbio Azul,

com reportagem na imprensa rosa.

 

Mas o certo é que o mar da Foz não desbotou

 jamais a sua cor atlântica, nem desistiu

desde há milénios de receber o Douro,

embora os caranguejos, as lapas

e os beijinhos nos tenham abandonado

como as histórias de antigos piratas e Robinsons

deixaram os nossos sonhos.

 

O mar da Foz envolve na salina rebentação

aquele poderoso rio, que apesar de retido

em comportas de barragem, incorpora

desde a nascente o corpo feminino

das ribeiras que para ele correm ainda

como rendilheiras, no regresso dos barcos».

 

«Mulheres de canastra à cabeça, que num

recôncavo

de esquina, não calcetada, onde uma nesga

de terra desmentia o urbanismo

invasor, mijavam de pé

com rara pontaria dissimulando

entre as grossas saias,

as pernas afastadas. Não usavam cuecas

tal como uma modelo da Vogue,

cujo profundo decote dorsal,

 prolongado abaixo da cintura,

as abolia.

 

Coincidências

da baixa plebe

e da alta-costura».

 

Poema do dia seguinte

«Talvez ignores ainda

que não confio no poder dos versos,

que assim como os deuses

são um mero álibi de sentidos

duvidosos.

 

Mas, sem poder nenhum

os prefiro, livres na sua inteira

inutilidade. Restam-nos a roupa enxuta

de improváveis viagens, e sempre

o melhor vinho da colheita

por haver».

 

Mamografia de mármore

Deliciam-me as palavras

dos relatórios médicos, os nomes cheios

de saber oculto e míticos lugares

como a região sacro-lombar ou o tendão de

Aquiles.

 

Numa mamografia de rastreio

a incidência crânio-caudal seria

um bom título para uma tese teológica.

 

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax

de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma

de Nemésio, para não referir os vermelhos de

hemoptise

de Pessanha ou as engomadeiras tísicas

de Cesário.


Mas nenhum(a) falou (ou fala)

de mamografia de rastreio. Versos dignos

só os de mamilo róseo desde o tempo

de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite

 enquanto deusa, só restaram óleos e

mamografias de mármore».

In Poemas de Inês Lourenço, Coisas que nunca, Lisboa, &Etc, 2010, ISBN 978-989-815-025-7.

 Cortesia de wikipedia

JDACT, Inês Lourenço, Poesia,