Coisas que Nunca
A
poesia como lâmina implacável do tempo
«As
raparigas da Foz há muito deixaram
de
enlaçar os bilros sobre as almofadas.
Já
não imitam nos meandros da renda o desenho
das
ondas. Nem esperam, rodeadas de filhos pequenos
O
regresso do seu modesto ulisses. Hoje
trabalham
na pizzaria ou servem pregos e finos
na
esplanada. Com um pouco de sorte fazem
um
Curso de Gestão ou de outras ciências
ocultas
para gáudio da família que as vai
ver
desfilar no Cortejo da Queima e noutras
praxes
saloias que a turba não dispensa.
Também
há as outras, que ao certo não
sei
o que fazem, mas que ainda debutam
aos
dezoito anos ao som de O Danúbio Azul,
com
reportagem na imprensa rosa.
Mas
o certo é que o mar da Foz não desbotou
jamais a sua cor atlântica, nem desistiu
desde
há milénios de receber o Douro,
embora
os caranguejos, as lapas
e
os beijinhos nos tenham abandonado
como
as histórias de antigos piratas e Robinsons
deixaram
os nossos sonhos.
O
mar da Foz envolve na salina rebentação
aquele
poderoso rio, que apesar de retido
em
comportas de barragem, incorpora
desde
a nascente o corpo feminino
das
ribeiras que para ele correm ainda
como
rendilheiras, no regresso dos barcos».
«Mulheres
de canastra à cabeça, que num
recôncavo
de
esquina, não calcetada, onde uma nesga
de
terra desmentia o urbanismo
invasor,
mijavam de pé
com
rara pontaria dissimulando
entre
as grossas saias,
as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal
como uma modelo da Vogue,
cujo
profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as
abolia.
Coincidências
da
baixa plebe
e
da alta-costura».
Poema
do dia seguinte
«Talvez
ignores ainda
que
não confio no poder dos versos,
que
assim como os deuses
são
um mero álibi de sentidos
duvidosos.
Mas,
sem poder nenhum
os
prefiro, livres na sua inteira
inutilidade.
Restam-nos a roupa enxuta
de
improváveis viagens, e sempre
o
melhor vinho da colheita
por
haver».
Mamografia
de mármore
Deliciam-me
as palavras
dos
relatórios médicos, os nomes cheios
de
saber oculto e míticos lugares
como
a região sacro-lombar ou o tendão de
Aquiles.
Numa
mamografia de rastreio
a
incidência crânio-caudal seria
um
bom título para uma tese teológica.
Alguns
poetas falam disso. Pneumotórax
de
Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de
Nemésio, para não referir os vermelhos de
hemoptise
de
Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de
Cesário.
Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de
mamografia de rastreio. Versos dignos
só
os de mamilo róseo desde o tempo
de
Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa, só restaram óleos e
mamografias
de mármore».
In
Poemas de Inês Lourenço, Coisas que nunca, Lisboa, &Etc, 2010, ISBN
978-989-815-025-7.
JDACT, Inês Lourenço, Poesia,