segunda-feira, 9 de novembro de 2020

As Benevolentes. II Guerra Mundial. Jonathan Littell. «Mas ele percebia muito bem que tínhamos interesses em comum: eu, em arranjar um posto, e ele, em manter o seu»

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Toccata

«(…) É verdade, eu falava um francês impecável; é que tive mãe francesa; passei dez anos da minha infância na França, fiz o primário, o curso preparatório e até dois anos de estudos superiores, na ELSP, e como cresci no Sul podia inclusive impingir uma pitada de sotaque meridional, de toda a forma ninguém prestava atenção, era realmente uma bagunça, recebiam-me em Orsay com uma sopa, alguns insultos também, convém dizer que não tentei me fazer passar por um deportado, mas por um trabalhador da STO, e disso eles não gostavam muito, os gaullistas, então me maltrataram um pouco, os outros pobres coitados também, depois nos soltaram, nada de Lutetia para nós, mas a liberdade. Não fiquei em Paris, conhecia muita gente lá, e do tipo irrelevante, fui para o interior, vivi de pequenos expedientes aqui e ali. Depois as coisas se acalmaram. Logo pararam de fuzilar as pessoas, mais um pouco e sequer se davam o trabalho de levá-las para a prisão.

Então fiz umas buscas e acabei encontrando um conhecido meu. Ele tinha-se saído bem, passara de uma administração à outra sem choques; homem precavido, tivera grande cuidado em não alardear os favores que nos prestava. No início, não queria-me receber, mas quando finalmente compreendeu quem eu era viu que não tinha realmente escolha. Não posso dizer que foi uma conversa agradável: reinava uma nítida sensação de desconforto, de constrangimento. Mas ele percebia muito bem que tínhamos interesses em comum: eu, em arranjar um posto, e ele, em manter o seu. Ele tinha um primo no Norte, um ex-despachante que estava tentando montar uma pequena empresa com três Leavers recuperados junto a uma viúva falida. Esse homem me contratou, eu tinha que viajar, ir de porta em porta vendendo os seus rendados. Eu tinha horror àquele trabalho; finalmente consegui convencê-lo de que poderia ser mais útil no plano da organização. É verdade que eu tinha uma boa experiência nesse domínio, ainda que não pudesse aproveitá-la, como no caso do meu doutorado. A empresa cresceu, sobretudo a partir dos anos 50, quando reatei laços na República Federal e consegui abrir o grande mercado alemão para nós. Poderia ter voltado para a Alemanha na época: vários dos meus ex-colegas viviam lá na maior tranquilidade, alguns haviam cumprido uma pena curta, outros sequer foram perturbados. Com o meu currículo, eu poderia ter recuperado o meu nome, meu doutorado, reivindicado uma pensão de ex-combatente e de invalidez parcial, ninguém teria notado. Teria encontrado trabalho rapidamente. Mas, eu pensava, que interesse havia naquilo? O direito, no fundo, motivava-me tão pouco quanto o comércio, e depois eu acabara tomando gosto pela renda, essa deslumbrante e harmoniosa criação do homem. Quando compramos teares suficientes, meu patrão decidiu abrir uma segunda fábrica e me entregou a sua direcção. É esse posto que ocupo desde então, à espera da reforma. Nesse período casei-me, com certa repugnância, é verdade, mas aqui, no Norte, isso era mais que necessário, uma forma de consolidar minhas conquistas. Escolhi-a de boa família, relativamente bonita, uma mulher como convém, e dei-lhe imediatamente um filho, um pouco para ocupá-la. Infelizmente ela teve gémeos, deve ser coisa da família, da minha, quero dizer, para mim um pirralho teria sido mais que suficiente. Meu patrão me adiantou um dinheiro, comprei uma casa confortável, não muito longe do mar. Foi assim que fui parar no meio da burguesia. Em todo o caso, era melhor daquele jeito. Depois de tudo que aconteceu, eu precisava sobretudo de calma e regularidade. Meus sonhos de juventude, o curso da minha vida lhes quebrara a espinha e minhas angústias haviam-se dissipado lentamente, de uma ponta da Europa alemã à outra. Saí da guerra um homem vazio, apenas com amargura e uma vergonha infinita, como areia rangendo nos dentes. Assim, uma vida de acordo com todas as convenções sociais me calhava: um casulo confortável, ainda que o contemple frequentemente com ironia, às vezes com ódio». In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, 2014, Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.

Cortesia PdomQuixote/JDACT

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