Toccata
«(…) É verdade, eu falava um
francês impecável; é que tive mãe francesa; passei dez anos da minha infância
na França, fiz o primário, o curso preparatório e até dois anos de estudos
superiores, na ELSP, e como cresci no Sul podia inclusive impingir uma pitada de
sotaque meridional, de toda a forma ninguém prestava atenção, era realmente uma
bagunça, recebiam-me em Orsay com uma sopa, alguns insultos também, convém
dizer que não tentei me fazer passar por um deportado, mas por um trabalhador
da STO, e disso eles não gostavam muito, os gaullistas, então me maltrataram um
pouco, os outros pobres coitados também, depois nos soltaram, nada de Lutetia para
nós, mas a liberdade. Não fiquei em Paris, conhecia muita gente lá, e do tipo
irrelevante, fui para o interior, vivi de pequenos expedientes aqui e ali.
Depois as coisas se acalmaram. Logo pararam de fuzilar as pessoas, mais um
pouco e sequer se davam o trabalho de levá-las para a prisão.
Então
fiz umas buscas e acabei encontrando um conhecido meu. Ele tinha-se saído bem, passara
de uma administração à outra sem choques; homem precavido, tivera grande cuidado
em não alardear os favores que nos prestava. No início, não queria-me receber, mas
quando finalmente compreendeu quem eu era viu que não tinha realmente escolha. Não
posso dizer que foi uma conversa agradável: reinava uma nítida sensação de desconforto,
de constrangimento. Mas ele percebia muito bem que tínhamos interesses em
comum: eu, em arranjar um posto, e ele, em manter o seu. Ele tinha um primo no Norte,
um ex-despachante que estava tentando montar uma pequena empresa com três Leavers
recuperados junto a uma viúva falida. Esse homem me contratou, eu tinha que viajar,
ir de porta em porta vendendo os seus rendados. Eu tinha horror àquele
trabalho; finalmente consegui convencê-lo de que poderia ser mais útil no plano
da organização. É verdade que eu tinha uma boa experiência nesse domínio, ainda
que não pudesse aproveitá-la, como no caso do meu doutorado. A empresa cresceu,
sobretudo a partir dos anos 50, quando reatei laços na República Federal e
consegui abrir o grande mercado alemão para nós. Poderia ter voltado para a
Alemanha na época: vários dos meus ex-colegas viviam lá na maior tranquilidade,
alguns haviam cumprido uma pena curta, outros sequer foram perturbados. Com o meu
currículo, eu poderia ter recuperado o meu nome, meu doutorado, reivindicado
uma pensão de ex-combatente e de invalidez parcial, ninguém teria notado. Teria
encontrado trabalho rapidamente. Mas, eu pensava, que interesse havia naquilo?
O direito, no fundo, motivava-me tão pouco quanto o comércio, e depois eu
acabara tomando gosto pela renda, essa deslumbrante e harmoniosa criação do
homem. Quando compramos teares suficientes, meu patrão decidiu abrir uma
segunda fábrica e me entregou a sua direcção. É esse posto que ocupo desde então,
à espera da reforma. Nesse período casei-me, com certa repugnância, é verdade,
mas aqui, no Norte, isso era mais que necessário, uma forma de consolidar minhas
conquistas. Escolhi-a de boa família, relativamente bonita, uma mulher como convém,
e dei-lhe imediatamente um filho, um pouco para ocupá-la. Infelizmente ela teve
gémeos, deve ser coisa da família, da minha, quero dizer, para mim um pirralho
teria sido mais que suficiente. Meu patrão me adiantou um dinheiro, comprei uma
casa confortável, não muito longe do mar. Foi assim que fui parar no meio da
burguesia. Em todo o caso, era melhor daquele jeito. Depois de tudo que
aconteceu, eu precisava sobretudo de calma e regularidade. Meus sonhos de
juventude, o curso da minha vida lhes quebrara a espinha e minhas angústias
haviam-se dissipado lentamente, de uma ponta da Europa alemã à outra. Saí da
guerra um homem vazio, apenas com amargura e uma vergonha infinita, como areia
rangendo nos dentes. Assim, uma vida de acordo com todas as convenções sociais
me calhava: um casulo confortável, ainda que o contemple frequentemente com
ironia, às vezes com ódio». In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006,
Publicações Dom Quixote, 2014, Alfragide, ISBN 978-972-20-3304-6.
Cortesia PdomQuixote/JDACT
Conhecimentos, II Guerra Mundial, JDACT, Jonathan Littell, Memória Viva, Mulher,