segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Álvaro de Campos. Poesia. «Perco-me subitamente da visão imediata, estou outra vez na outra cidade, na outra rua, e a outra rapariga passa. Que grande vantagem o recordar intransigentemente!...»

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«Álvaro de Campos é um poeta moderno, aquele que vive as ideologias do século XX. Engenheiro de profissão vê o mundo com a inteligência concreta de um homem dominado pela máquina. De temperamento rebelde e agressivo, seus poemas reproduzem a revolta e o inconformismo, manifestados através de uma verdadeira revolução poética»

A Praça

«A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol (como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu

Porque o amo? Não importa. Adiante ...

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há».

 

Acaso

«No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo,

e isto é o mesmo também afinal».

In Álvaro de Campos, Obra Completa, Fernando Pessoa, Editora Tinta da China, 2014, ISBN 978-989-671-232-7.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT

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