«Álvaro de Campos é um poeta moderno, aquele que vive as ideologias do século XX. Engenheiro de profissão vê o mundo com a inteligência concreta de um homem dominado pela máquina. De temperamento rebelde e agressivo, seus poemas reproduzem a revolta e o inconformismo, manifestados através de uma verdadeira revolução poética»
A Praça
«A
praça da Figueira de manhã,
Quando
o dia é de sol (como acontece
Sempre
em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora
seja uma memória vã.
Há
tanta coisa mais interessante
Que
aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo
aquilo, mesmo aqui ... Sei eu
Porque
o amo? Não importa. Adiante ...
Isto de
sensações só vale a pena
Se a
gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma
delas em mim serena...
De
resto, nada em mim é certo e está
De
acordo comigo próprio. As horas belas
São as
dos outros ou as que não há».
Acaso
«No
acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas
não, não é aquela.
A outra
era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me
subitamente da visão imediata,
Estou
outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a
outra rapariga passa.
Que
grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora
tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho
pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que
grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao
menos escrevem-se versos.
Escrevem-se
versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se
calhar, ou até sem calhar,
Maravilha
das celebridades!
Ia eu
dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas
isto era a respeito de uma rapariga,
De uma
rapariga loira,
Mas
qual delas?
Havia
uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa
outra espécie de rua;
E houve
esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa
outra espécie de rua;
Porque
todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo
que foi é a mesma morte,
Ontem,
hoje, quem sabe se até amanhã?
Um
transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria
eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode
ser... A rapariga loira?
É a
mesma afinal...
Tudo é
o mesmo afinal...
Só eu,
de qualquer modo, não sou o mesmo,
e isto
é o mesmo também afinal».
In Álvaro de Campos, Obra Completa, Fernando Pessoa, Editora Tinta da China, 2014, ISBN 978-989-671-232-7.
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