«Roselyn Longworth reflectiu sobre sua desgraça. O inferno não era feito de fogo e enxofre, concluiu. Era feito de um cruel autoconhecimento. No inferno, você aprende a verdade sobre si mesmo. Enfrenta as mentiras que disse à própria alma para justificar um erro. O inferno era também a humilhação infinita, exactamente o que ela sentia naquela festa numa casa de campo. Ao redor, os outros convidados de lorde Norbury riam e brincavam enquanto aguardavam o chamado para o jantar. No dia anterior, ao chegar na carruagem de lorde Norbury, descobrira que a lista de convidados não era o que ela esperava. Os homens faziam parte da sociedade culta, mas as mulheres... Um grito interrompeu seus pensamentos. Uma mulher que usava um espalhafatoso vestido de noite azul-safira fingia afastar o homem que a agarrava. Os outros incentivavam o companheiro. Até Norbury fazia isso. Após a falsa resistência, a cativa se rendeu a um abraço e um beijo que não deveriam ser dados em público. Roselyn avaliou os rostos maquiados e as roupas exageradas das mulheres. Os homens não tinham trazido suas esposas. Não tinham sequer levado suas amantes refinadas. Aquelas mulheres eram prostitutas dos bordéis de Londres. Ela desconfiava que algumas nem ao menos teriam esse status.
E ela estava no meio.
Não podia negar a dura conclusão a que isso levava. Os homens trouxeram suas prostitutas e lorde Norbury trouxera a dele. Como ela podia ter interpretado tão mal os factos ocorridos havia um mês? Tentou se lembrar do dia em que lorde Norbury lhe fizera os primeiros elogios e propostas, mas a recordação se fora, virara cinzas diante da chama impiedosa da realidade das últimas 24 horas. De repente ele passou por entre seus convidados, vindo na direcção dela. A cada passo, aumentava um pouco o brilho nos olhos dele. Antes ela via neles chamas de amor e paixão. Naquele momento, enxergava apenas reflexos gélidos. Tinha sido uma idiota, patética. Está muito calada, Rose. Passou o dia todo assim. Ele se aproximou, assomando ao lado da cadeira dela. No dia anterior, ela teria ficado feliz em receber a atenção dele e julgaria romântico seu gesto. Burra, burra!
Pedi que me deixasse ir embora. Só estou nesta sala porque o senhor exigiu que eu descesse para o jantar, portanto não reclame por não me envolver nas brincadeiras da sua festa. Não me interesso pelas pessoas que estão aqui, nem pelo comportamento libertino que demonstram. No canto da sala, o casal enlaçado já não notava o mundo ao redor, ainda que o mundo percebesse a apalpação deles. Nossa, como é orgulhosa. Muito mais do que deveria. A observação tinha um toque cruel. Ela sentiu a nuca formigar. Ele não se referia apenas à opinião dela sobre a festa. Rose havia recusado algumas coisas na noite anterior. A princípio nem entendera o que ele queria e não escondera seu espanto quando ele lhe explicara.
Em questão de minutos, o amante afectuoso e generoso se transformara no comprador zangado e cheio de desprezo. Frio. Duro. Mesquinho. Transformara-se num homem que pagara mais do que deveria por um bem e depois descobrira o engano. Ela ficou com o rosto quente ao se lembrar da sórdida cena no quarto, antes que ele saísse. Pensava que era a amada, a amante. Ele deixara claro que a considerava uma prostituta como outra qualquer. As palavras mordazes tinham sido como tapas que a despertaram de uma ilusão criada por sua solidão e falta de esperança. Se sou muito orgulhosa, chame a carruagem e me deixe partir. Seja gentil e permita que eu mantenha o pouco que me resta desse orgulho. Mas eu ficaria sem uma mulher. Vou parecer idiota em minha própria casa. Diremos que adoeci. Diremos que... Ele colocou a mão no ombro dela, fazendo-a calar-se. Apertou com firmeza, para machucar. Ela tentou conter um tremor de repulsa por ter aquela mão na sua pele. Não vamos dizer nada. Não vai a lugar nenhum. Espero que continue a demonstrar gratidão por minha generosidade. Se me agradar, podemos continuar com nosso acerto. Gosta de vestidos e enfeites, Rose. Quer ter o luxo e o conforto que perdeu após a ruína de sua família.
Ela sentiu a garganta apertar. Piscou, afastando as primeiras lágrimas do dia. O senhor entendeu errado. Concedeu-me seus favores e sua inocência. Aceitou meus presentes. Não entendi errado coisa nenhuma. Ele se inclinou, pondo o rosto a centímetros do dela. Rose conteve a vontade de afastar aquela cara vermelha, os olhos claros e os cabelos louros que antes eram de um homem a quem respeitava. Tinha até se convencido de que ele era bonito. Pelo menos agora nos entendemos, não é?, disse ele, fazendo a frase soar como uma exigência, e completou: esta noite não haverá mais melindres infantis. Ela sentiu o estômago revirar. Já houve muitos mal-entendidos e acredito que continue havendo. Passei o dia inteiro pedindo para ir embora porque não acontecerá nada esta noite. A boca de Norbury formou uma linha tão dura que ela se sentiu aliviada por haver outras pessoas ali. A mão no ombro forçou o aperto. Está pondo a paciência de um homem à prova, Rose.
De novo, ela sentiu um formigamento na nuca, que dessa vez se espalhou pela coluna. Examinou o rosto dele em busca do homem jovial que até pouco ela pensava que a amasse. Não encontrou nada. Claro que não. Aquele homem nunca existira. Um pequeno distúrbio quebrou a batalha silenciosa travada entre eles. O mordomo se aproximava. Norbury pegou o cartão que ele trazia numa salva de prata. Leu-o e se afastou. Abriu as portas que davam para a biblioteca. Antes que se fechassem, Rose viu de relance um homem alto, de cabelos negros, à espera. Sentiu novamente o estômago revirar. Tentou conter o pânico que ameaçava invadi-la. Mais uma vez, tinha sido burra. Ignorante e cega. O que acabara de enfrentar não era nada. A verdadeira descida ao inferno aconteceria à noite.
Ao entrar na biblioteca, Norbury parecia zangado. Kyle
Bradwell, que o esperava, vislumbrou a sala de visitas antes que as portas se
fechassem. Bradwell. Pensei que viesse mais cedo. Os inspetores demoraram mais
do que o esperado, explicou Kyle e então fez um gesto em direcção à sala e
comentou: está dando uma festa. Posso voltar amanhã. Bobagem. Já está aqui.
Vejamos o que trouxe. O rosto de Norbury se abriu num sorriso supostamente
encorajador. Kyle desconfiou que a irritação não tivesse sido motivada pela
hora da visita. Como quase todos os homens de sua posição social, o visconde de
Norbury, filho e herdeiro do conde de Cottington, não gostava de ser
contrariado. Julgava que todos, menos os seus pares, tinham obrigação de
concordar com tudo o que ele fizesse ou dissesse. Pelo jeito, alguém ali não
seguira essa norma. Kyle abriu um grande rolo de papel em cima da escrivaninha.
Norbury se debruçou sobre o mapa. Olhou-o com atenção e apontou para uma parte
vazia próxima de um riacho. Por que não há nada aqui? Podemos construir mais
uma casa e de bom tamanho. Seu pai não quer mais uma casa que possa ser vista
dos fundos do solar principal. Por causa do riacho, não há como aproveitar o
terreno sem que uma casa fique... Ele não está em condições físicas ou mentais
de decidir essas questões. Você sabe. Por isso ele me passou a administração
dos negócios. O terreno continua sendo dele, que me deu ordens directas». In Madeline
Hunter, Jogos do Prazer, 2008, Editora Arqueiro, 2014, ISBN 978-858-041-244-4.
Cortesia de EArqueiro/JDACT
JDACT, Madeline Hunter, Literatura,