«(…) Quanto a mim, não esperava nada além de desastre. Conhecera o seu abraço antes mesmo de respirar ou enxergar. Era a segunda criança na família, um ano mais nova que o meu irmão Amram, mas radicalmente o oposto dele, amaldiçoada pelo fardo do meu primeiro alento. Minha mãe morreu pouco antes de eu nascer. Naquele momento, o mapa da minha vida manifestou-se sobre a minha pele como uma explosão de marcas vermelhas, pintas que, quando seguidas de uma para outra, me conduziram ao meu destino. Lembro-me do instante em que entrei no mundo, a grande calma que foi subitamente interrompida, o calor da minha pulsação sob a pele. O ventre da minha mãe foi aberto com uma faca afiada e fui tirada de lá. Estou convencida de que ouvi o rugido de dor do meu pai enlutado, o único som a romper o silêncio terrível de alguém que nasce da morte. Eu mesma não chorei, nem me lamuriei. As pessoas notaram isso. As parteiras sussurraram entre si, convencidas de que eu era ou abençoada ou amaldiçoada. Meu silêncio não foi o único aspecto incomum em mim, nem as sardas avermelhadas que surgiram sobre a minha pele uma hora depois do meu nascimento. Foi o meu cabelo, com a sua cor vermelho-escura de sangue, uma cobertura espessa crescente, como se eu já conhecesse este mundo e aqui já tivesse estado antes.
Disseram que trazia os olhos
abertos, a marca de um rebanho à parte. O que era de esperar de uma criança
nascida de uma mulher morta, pois fui tocada por Mal’ach ha-Mavet, o Anjo da Morte, antes de nascer no mês de
Av, no Tisha B’Av, o nono dia, sob o
signo do leão. Sempre soube que haveria um leão à minha espera. Sonho com tais
criaturas desde que consigo me lembrar. Nos meus sonhos, alimentava um leão com
a minha mão. Em troca, ele tomava a minha mão inteira na sua boca e me comia
viva. Ao deixar a infância, decidi cobrir a cabeça; mesmo quando estivesse no pátio
do meu pai, guardava-me para mim. Nas raras ocasiões em que acompanhei a nossa
cozinheira ao mercado, via outras jovens se divertindo e enciumava-me até mesmo
da mais comum dentre elas. Elas viviam uma vida plena, ao passo que eu só
conseguia pensar em tudo o que não tinha. Elas falavam alegremente de seu futuro
como noivas enquanto se encontravam junto ao poço ou se reuniam na rua dos
Padeiros, acompanhadas das mães e tias. Sentia vontade de gritar com elas, mas
não dizia nada. Como poderia falar da minha inveja quando havia coisas que
queria ainda mais do que um marido, um filho ou uma casa própria? Ansiava por
uma noite sem sonhos, um mundo sem leões, um ano sem Av, aquele amargo mês vermelho.
Deixamos
a cidade quando
o segundo Templo foi posto em ruínas, aventurando-nos pelo Vale dos Espinhos.
Durante meses os romanos haviam profanado o Templo, crucificando o nosso povo
dentro dos seus muros sagrados, arrancando o ouro dos umbrais de entrada e dos
pórticos. Era para lá que os judeus de toda a criação viajavam a fim de
oferecer sacrifícios perante o local mais sagrado, com milhares chegando à época
da Festa dos Pães Ázimos, ansiosos por vislumbrar as paredes de ouro do lugar
de morada da palavra de Deus». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora
Planeta, 2011, 2013, ISBN 978-854-220-122-2.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Alice Hoffman, Literatura, Deserto,