Verão, 70 d. C.
«Viemos como pombos através do deserto. Num tempo
em que não existia nada além da morte, éramos gratos por qualquer coisa, e
muito gratos por tudo quando acordávamos para mais um dia».
«Caminhamos por tanto tempo que me esqueci do que era viver entre quatro paredes ou dormir toda uma noite. Nessa época, perdi tudo o que poderia ter possuído caso Jerusalém não tivesse caído: um marido, uma família, um futuro para chamar de meu. A minha infância desapareceu no deserto. A pessoa que fora um dia deixou de existir quando me vesti de branco e a poeira subiu em nuvens. Éramos nómadas, deixando para trás camas e pertences, tapetes e vasos de bronze. O nosso lar então era a casa do deserto, preta à noite, brutalmente branca ao meio-dia.
Dizem que a beleza mais verdadeira
encontra-se na terra mais árida e que Deus pode ser encontrado lá por quem tem
os olhos abertos. Mas os meus olhos estavam fechados contra os ventos da mudança,
que podem cegar uma pessoa num instante. A própria respiração era um milagre
quando as tempestades vinham rodopiando por toda a terra. A voz que surge do
silêncio é algo que ninguém é capaz de imaginar até que seja ouvida. Ela ruge
quando fala, mente para convencê-lo, rouba-lhe o pouco que tenha e o deixa sem
uma única palavra de conforto. O conforto não pode existir em tal lugar. Só o
que é brutal sobrevive. O que é astúcia subsiste até de manhã.
A minha pele estava queimada, as
minhas mãos, esfoladas. Entreguei-me ao deserto, curvando-me à sua voz
poderosa. Por onde quer que andasse, o meu destino andava comigo, costurado aos
meus pés com linha vermelha. Tudo o que nunca será já foi escrito muito antes
que aconteça. Não há nada que possamos fazer para impedi-lo. Não poderia seguir
noutra direcção. As estradas de Jerusalém levavam apenas a três lugares: a
Roma, ao mar ou ao deserto. Meu povo tornara-se errante, como fora no início
dos tempos, novamente expulso. Segui meu pai para fora da cidade porque não
tinha escolha. Nenhum de nós tinha, verdade seja dita.
Não sei como tudo começou, mas sei como terminou.
Ocorreu no mês de Av, cujo
signo é Arieh, o leão. É
um mês que para o nosso povo significa a destruição, um período em que as
pedras do deserto tornam-se tão quentes que não se pode tocá-las sem queimar os
dedos, em que a fruta murcha nas árvores antes de amadurecer e as sementes
chacoalham no seu interior, em que o céu torna-se branco e a chuva não cai. O
primeiro Templo foi destruído nesse mês. As ferramentas significavam armas e não
puderam ser usadas na construção do mais sagrado dos lugares santos; por isso,
o grande guerreiro, o rei David, foi proibido de construir o Templo, porque
conhecera os males da guerra. Em vez disso, a honra recaiu sobre seu filho, o
rei Salomão, que invocou o shamir,
um verme capaz de atravessar
a pedra, e assim criou glória a Deus sem o uso de ferramentas de metal.
O Templo
foi construído como Deus decretara que deveria ser, livre de derramamento de
sangue e da guerra. Seus nove portões foram recobertos com ouro e prata. Lá, no
mais sagrado dos lugares, ficou a Arca que guardava a aliança do nosso povo com
Deus, um baú feito com a melhor madeira de acácia, decorado com dois querubins
dourados. Mas, apesar da grandiosidade, o primeiro Templo foi destruído, o
nosso povo, e Livros para a Babilónia. Entretanto, retornaria após setenta anos
para reconstruí-lo no mesmo local em que Abraão se dispusera a oferecer o filho
Isaac em sacrifício ao Todo-Poderoso, em que o mundo fora originalmente criado.
O segundo Templo resistiu por
centenas de anos como a morada da palavra de Deus, o centro da criação no
centro de Jerusalém, embora a Arca em si tivesse desaparecido, talvez na Babilónia.
Mas então o tempo de derramamento de sangue impôs-se a nós uma vez mais. Os
romanos quiseram tudo o que tínhamos. Chegaram até nós depois de invadirem inúmeras
terras com as suas legiões imensas, pretendendo não apenas conquistar, mas
humilhar, reivindicar não só a nossa terra e o nosso ouro, mas a nossa
humanidade». In Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN
978-854-220-122-2.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Alice Hoffman, Literatura, Deserto,