terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Camilo Castello Branco. Livro Negro de Padre Diniz. «Era homem padre Diniz? Os homens nascem, soffrem, e morrem assim? Aquelle corpo que se apalpava…»

Cortesia de wikipedia e jdact

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«Grande coragem foi a d'esse homem que tantos quadros, coloridos a sangue e lagrimas, deixou de si, como herança aos que desesperam! Era homem por ventura padre Diniz? A quem o pergunto eu?

A minha consciencia que se accusa de mesquinha; ao meu entendimento que não concebe a resignação vencendo a dôr; ao meu coração, que se não unge dos oleos d'esse augusto sacerdócio do martyrio; ao meu espirito avariado nas tempestades, que não têem podido vencer-lhe o orgulho ingenito, se é que não vae antes aqui uma estudada filosofia!

Era homem padre Diniz?

Os homens nascem, soffrem, e morrem assim?

Aquelle corpo que se apalpava; aquellas faces que se abriam em sulcos ao queimar das lagrimas; aquelles olhos que vieram de longe, procurando um tumulo; aquelles labios que se erguiam da terra, para beijarem, em cada novo dia, o novo instrumento d’um supplicio novo sempre; aquelles braços que achegaram para o coração tantos desgraçados; aquelle coração que, por não ter já prantos, recebia os prantos de todos os infortúnios alheios… tudo que se viu… aquelle homem por ventura era o homem que cae, que se aniquila, que reparte uma fibra por cada verme?

[…]

Em 1780, no palacio do enviado extraordinário a Roma, por alta noite, entrava uma mulher com uma criancinha ao colo. Approximou-se, com ella, do leito d’um agonisante, e a criancinha, de dois anos, estendeu os bralos a receber a mão, quasi cadáver do enfermo, que já mal a via. O agonisanto era o representante de Portugal na curia romana. A criancinha era o filho da condessa do Viso, e de dom Alvaro Albuquerque. A mulher, que tremia com ella nos braços, na presença do pavoroso quadro d’uma agonia, era a veneziana, que acompanhára Albuquerque a Roma.

N’esta camara, lugubremente alumiada, estava um moço de trinta anos, quando muito, braços cruzados, olhos ardentes, faces pallidas, vestido á corte de João V, como quem saira do saráo d’um banqueiro opulento da Italia, para entrar no quarto sombrio d’um muribundo. Era o marquez de Luso, mezes antres chegado a Roma, com poderes novos de Dona Maria I, para negociações secretas com S. Santidade. E o certo é que, meia hora antes, o cortezão de casaca recamada de oiro, e o enfermo, que se estorcia no lençol ensopado de suor, um e outro, folgados e alegres, tinham chegado d’um apolento festim, galhofando como rapazes, que não cediam a nenhuns em gentileza, acerca de conquistas principiadas para o que viera de Portugal depois, e conquistas desprezadas para o que viera antes». In Camilo Castello Branco, Livro Negro de Padre Diniz, 1863, Em Casa de F. G. Fonseca Editor, Porto, PQ9261, C3L5, 1863, University of Toronto, 2010, http://www.archive.org/details/livronegrodepadrOOcast.

Cortesia de UToronto/Editor CasaFGFonseca/JDACT

JDACT, Camilo Castello Branco, Cultura e Conhecimento, Literatura, Século XIX,