quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O Cavaleiro de Olivença. João Paulo O. Costa. «Não estou aqui para falar do que não sei, nem apenas para rever um bom amigo. Aliviado pela mudança do rumo da conversa, Vasco replicou: não nos víamos desde que nos separámos em Saragoça…»

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O pedido da Rainha

«(…) Que cisma, dom García. Estais mais desconfiado com o passar dos anos? Não brinques, Vasquito. Sei que um navio da armada que enviastes à Índia no ano passado já chegou a Lisboa. E além das especiarias das Índias trazia novas de descobertas a ocidente. Ainda aguardamos a chegada do capitão-mor, para depois avaliarmos o que se passou verdadeiramente. A caravela que entrou no Tejo era de mercadores particulares e não trazia oficiais da Coroa a bordo. Não me queiras convencer de que não têm notícias certas, mas somos pacientes, e havemos de vos fazer cumprir nossos acordos.

Vasco piscou os olhos três vezes seguidas, enquanto dom García prosseguiu: mas não interessa. Não estou aqui para falar do que não sei, nem apenas para rever um bom amigo. Aliviado pela mudança do rumo da conversa, Vasco replicou: não nos víamos desde que nos separámos em Saragoça, vai para três anos. Num dia desgraçado, em que o vosso rei deixou de ser o nosso príncipe. García ficou pensativo, e experimentou o vinho oferecido pelo amigo. Depois retomou a conversa: soube que morreu o vosso amigo dom Álvaro Ataíde. Sim. Foi em Novembro do ano passado. Era bem velho. Tinha cento e um anos. Sabes, conheci-o em Alcântara, no ano de mil quatrocentos e setenta e nove. Eu fazia parte da comitiva da rainha Isabel que foi negociar a paz com a duquesa de Viseu. García Pacheco pertencia à família de Diego López Pacheco, o marquês de Vilhena. De ascendência portuguesa, o marquês fora fidelíssimo do rei Henrique IV e apoiara a Beltraneja contra Isabel durante a Guerra de Sucessão de Castela; derrotado, aceitara a nova ordem e perdera uma parle de seus estados, mas era sabido que continuava a ser um simpatizante dos interesses do rei de Portugal em Castela. García fora um dos raros Pachecos que não secundara a posição de seu chefe, pois era amigo de infância de Isabel. Consumada a vitória, lograra salvar a posição do marquês e tornara-se num dos conselheiros privados da rainha.

Álvaro era um bom amigo. Foi ele quem me armou cavaleiro, em Arzila, há doze anos, e eu estive a seu lado no momento de sua morte; custou-me mais assistir a seu apagamento, que ver um companheiro tombar em batalha. É a vida. Deveis saber que estive na vossa corte há um ano, durante os preparativos do casamento de dom Manuel com a rainha dona Maria. Soube disso, mas eu estava em Inglaterra. Decerto que estais a par das tentativas d'el-rei Henrique para se assenhorear de terras no mar oceano. Aquele infeliz do Caboto parece ter andado por terras de vossa demarcação, de acordo com o tratado que firmámos em Tordesilhas. E agora el-rei Henrique quer doar ilhas no oceano a quem as for descobrir para sua Coroa, e consta que certos portugueses vão navegar sob sua bandeira. Devíamos unir esforços, dom García. Pois devíamos, Vasquito. É assunto de que poderemos falar assim que vosso rei se dispuser a preparar a armada das duas coroas e a nos relatar o que tem sido descoberto pelos seus navegadores. O nariz de Vasco Melo bamboleou mais depressa, e a orelha agitou-se para admiração de García. Tem novas manias, este rapaz. O castelhano prosseguiu: eu sei que nossos reinos têm outros problemas em mãos. É o caso da sucessão. Bem o teu dom Manuel é rei há quse seis anos e continua sem descendência.

Mas tem seus sobrinhos e esperamos que a rainha dona Maria emprenhe brevemente. Se Deus quiser será tão capaz quanto sua irmã dona Joana, que já deu herdeiro à Casa da Borgonha. Bem, e vós em Castela tende-la como herdeira por ser jurada. É precisamente dona Joana que me levou a procurar-te. Um estalo da língua assinalou a surpresa do Melo». In João Paulo Oliveira Costa, O Cavaleiro de Olivença, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, ISBN 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT

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