O pedido da Rainha
«(…)
Que cisma, dom García. Estais mais desconfiado com o passar dos anos? Não
brinques, Vasquito. Sei que um navio da armada que enviastes à Índia no ano
passado já chegou a Lisboa. E além das especiarias das Índias trazia novas de
descobertas a ocidente. Ainda aguardamos a chegada do capitão-mor, para depois avaliarmos
o que se passou verdadeiramente. A caravela que entrou no Tejo era de
mercadores particulares e não trazia oficiais da Coroa a bordo. Não me queiras
convencer de que não têm notícias certas, mas somos pacientes, e havemos de vos
fazer cumprir nossos acordos.
Vasco
piscou os olhos três vezes seguidas, enquanto dom García prosseguiu: mas não
interessa. Não estou aqui para falar do que não sei, nem apenas para rever um
bom amigo. Aliviado pela mudança do rumo da conversa, Vasco replicou: não nos
víamos desde que nos separámos em Saragoça, vai para três anos. Num dia
desgraçado, em que o vosso rei deixou de ser o nosso príncipe. García ficou
pensativo, e experimentou o vinho oferecido pelo amigo. Depois retomou a
conversa: soube que morreu o vosso amigo dom Álvaro Ataíde. Sim. Foi em Novembro
do ano passado. Era bem velho. Tinha cento e um anos. Sabes, conheci-o em
Alcântara, no ano de mil quatrocentos e setenta e nove. Eu fazia parte da comitiva
da rainha Isabel que foi negociar a paz com a duquesa de Viseu. García Pacheco
pertencia à família de Diego López Pacheco, o marquês de Vilhena. De
ascendência portuguesa, o marquês fora fidelíssimo do rei Henrique IV e apoiara
a Beltraneja
contra Isabel durante a Guerra de Sucessão de Castela; derrotado, aceitara a
nova ordem e perdera uma parle de seus estados, mas era sabido que continuava a
ser um simpatizante dos interesses do rei de Portugal em Castela. García fora
um dos raros Pachecos que não secundara a posição de seu chefe, pois era amigo
de infância de Isabel. Consumada a vitória, lograra salvar a posição do marquês
e tornara-se num dos conselheiros privados da rainha.
Álvaro
era um bom amigo. Foi ele quem me armou cavaleiro, em Arzila, há doze anos, e
eu estive a seu lado no momento de sua morte; custou-me mais assistir a seu apagamento,
que ver um companheiro tombar em batalha. É a vida. Deveis saber que estive na
vossa corte há um ano, durante os preparativos do casamento de dom Manuel com a
rainha dona Maria. Soube disso, mas eu estava em Inglaterra. Decerto que estais
a par das tentativas d'el-rei Henrique para se assenhorear de terras no mar
oceano. Aquele infeliz do Caboto parece ter andado por terras de vossa demarcação,
de acordo com o tratado que firmámos em Tordesilhas. E agora el-rei Henrique
quer doar ilhas no oceano a quem as for descobrir para sua Coroa, e consta que
certos portugueses vão navegar sob sua bandeira. Devíamos unir esforços, dom
García. Pois devíamos, Vasquito. É assunto de que poderemos falar assim que
vosso rei se dispuser a preparar a armada das duas coroas e a nos relatar o que
tem sido descoberto pelos seus navegadores. O nariz de Vasco Melo bamboleou
mais depressa, e a orelha agitou-se para admiração de García. Tem novas
manias, este rapaz. O castelhano prosseguiu: eu sei que nossos reinos têm
outros problemas em mãos. É o caso da sucessão. Bem o teu dom Manuel é rei há
quse seis anos e continua sem descendência.
Mas
tem seus sobrinhos e esperamos que a rainha dona Maria emprenhe brevemente. Se
Deus quiser será tão capaz quanto sua irmã dona Joana, que já deu herdeiro à
Casa da Borgonha. Bem, e vós em Castela tende-la como herdeira por ser jurada.
É precisamente dona Joana que me levou a procurar-te. Um estalo da língua
assinalou a surpresa do Melo». In João Paulo Oliveira Costa, O Cavaleiro de
Olivença, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, ISBN 978-989-644-184-5.
Cortesia de CL/TDebates/JDACT
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