Negro
«O
tecto há-de ter sido branco. Agora tem manchas de humidade que parecem uma
varicela negra e rachaduras irregulares como veias e artérias de um obscuro
sangue. A cor varia consoante a luz que entra pela pequena janela com grades: é
uma espécie de branco. Talvez um dos sessenta e sete tons de branco que os esquimós
identificam com sessenta e sete palavras diferentes. Eu chamo-lhe branco de
tecto de prisão. Passo a maior parte do tempo deitado no catre, de barriga para
o ar e com os dedos entrelaçados sobre o peito, indiferente a quase tudo o que
sucede no estabelecimento prisional e também ao que acontece do lado de fora
dos muros e das paredes da penitenciária. Fixo o olhar no branco do tecto da
cela e, aos poucos, convenço-me de que tenho diante de mim um vasto e inóspito
deserto de gelo, branco, branco, branco, como um espaço morto dentro de um
tempo morto: uma estepe gelada e sem vida. Assemelha-se àquilo que tenho
dentro: desolação e desistência.
Talvez por isso me aborreça quase
tudo, desde logo a possibilidade de, um dia, me libertarem. Penso nisso e parece-me
uma ameaça: a liberdade que é oferecida a quem está lá fora deixou de me
interessar e nem sequer é liberdade. O exterior do estabelecimento prisional
está cheio de cercas, gaiolas e grades invisíveis, mentais, mais concretas e
constrangedoras do que as barras de aço que há na janelota da cela. Por estar
colocada num ponto tão alto da parede, junto ao tecto, a janela é de acesso
relativamente difícil. Ser-me-ia necessário trepar para cima de uma cadeira se
por acaso quisesse ver o que existe do lado de fora da cadeia. Graças às peripécias
que me permitiram aceder de pleno direito à tranquilidade do sistema prisional,
aprendi, porém, a absoluta conveniência da imobilidade e a enrolar-me numa
bola, como qualquer bicho de pêlo, até que a borrasca passe. É por isso que
agora fico tanto tempo deitado de barriga para o ar, sem nenhuma curiosidade de
saber o que acontece para lá das grades, dos muros e das cercas de arame
farpado. Contento-me com o vasto deserto branco do tecto da cela e já não me
mobiliza nenhum esforço, nenhuma azáfama. Mas não fui sempre assim. Estava
desempregado há mais num dos melhores semanários do país. Farto de marrar
contra portas fechadas, acabei por responder a um anúncio classificado para ser
ghostwriter de
uma celebridade da televisão que pretendia publicar a sua autobiografia. Foi a
melhor coisa que podia ter feito. Resolvi o problema das contas de uma forma
mais ou menos definitiva e, retido na cela deste estabelecimento prisional,
disponho agora de tempo livre para escrever tudo o que me apetece, incluindo o
livro que me foi encomendado. O anúncio a que respondi era bastante explícito
quanto à natureza do trabalho a realizar: procuravam alguém capaz de escrever,
em tom bem-humorado, a autobiografia de uma personalidade da chamada Reality TV, algum dos
indivíduos, supus, que participaram num programa em que os concorrentes aceitam
ficar fechados numa casa durante vários meses, a mandriar e praticar
futilidades sob a vigilância permanente de câmaras de filmar. Assisto, uma vez
por ano, à grande final do concurso, quando vou cear a casa dos meus pais na
noite de Natal, e costumo experimentar, nessa ocasião, um sentimento que
mistura espanto, repulsa e vergonha por estar a ver e a ouvir as inanidades que
os participantes fazem e dizem perante milhões de espectadores e das próprias
famílias. Lavam-se, despem-se, fornicam, dormem, discutem e insultam-se em directo,
e fazem absoluta questão de, a cada passo, fazer alarde de uma profunda ignorância,
atestando deste modo o fracasso do ensino público ou o talento da produção do
programa para escolher os indivíduos mais boçais que aparecem.
Os honorários do trabalho podiam
ser negociados e tinha de me comprometer a ter o livro pronto num prazo de seis
meses, para estar à venda quando começasse a ser emitido um novo programa da
televisão no qual o autobiografado famoso deveria também participar, ampliando
a sua celebridade. Ultrapassada a barreira psicológica que me permitiria
escrever a autobiografia de outra pessoa, a qual, ainda por cima, era alguém capaz
de exibir a sua intimidade postiça durante meses, ocorreu-me que este podia bem
ser o impulso que me faltava para iniciar uma carreira como escritor. Tendo em
conta o ponto a que o jornalismo chegou e a idade que tenho, pareceu-me
evidente que ia precisar de arranjar outra profissão qualquer, ainda que não
esteja minimamente habilitado para fazer mais nada. Abandonei precocemente o
curso de Direito, no qual me inscrevi por insistência do meu pai, resumindo-se
as minhas aptidões, por isso, a escrever notícias e a perder dinheiro a jogar póquer
em casinos clandestinos». In Manuel Jorge Marmelo, O Tempo Morto É Um
Bom Lugar, 2014, Quetzal Editores, 2014, ISBN 978-989-722-173-6.
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