«(…) Woodrow possuía visivelmente as mesmas preciosas qualidades. Aos quarenta, tinha um casamento feliz com Glória, ou, se não o tinha, partia do princípio de que era o único a sabê-lo. Era Chefe da Chancelaria e era de apostar que, se jogasse bem o seu jogo, podia vir a ser Chefe de Missão no próximo posto modesto e daí avançar por postos menos modestos até à dignidade de Sir, proposta a que ele próprio não atribuía qualquer importância, claro, mas seria agradável para Glória. Havia nele qualquer coisa de militar e na verdade era filho de militar. Nos seus dezassete anos ao serviço do Foreign Office de Sua Majestade tinha cravado o seu estandarte em meia dúzia de Missões Britânicas no ultramar. Mas o Quénia, perigoso, decadente, saqueado, falido e outrora Britânico, tinha-o motivado mais do que qualquer outro, embora não ousasse perguntar a si próprio em que medida esse facto era devido à Tessa. Muito bem, disse ele com alguma agressividade a Mildren, depois de fechar a porta e baixar o trinco. Mildren exibia um eterno beicinho que lhe era próprio. Sentado à secretária fazia lembrar um menino gorducho e malcriado que não queria comer a sopa. Estava instalada no Oasis, disse ele, Qual oásis? Seja mais preciso, se for capaz. Mas Midren, apesar da sua idade e categoria social, não era tão fácil de irritar como Woodrow fora levado a crer. Tinha um bloco com notas em estenografia e estava a consultá-lo antes de falar. Deve ser o que lhes ensinam agora, pensou Woodrow com desprezo. De outra forma, onde é que aquele arrivista de água doce arranjaria tempo para estudar estenografia?
Existe
uma pousada na margem leste do Lago Turkana, na ponta sul, anunciou Mildren, de
olhos pregados ao bloco. Chama-se Oasis. A Tessa passou lá a noite e saiu na
manhã seguinte num todo-o-terreno fornecido pelo dono da pousada. Disse que
queria ver o berço natal da civilização, uns trezentos quilómetros a norte: a
Cova do Leakey. Corrigindo: o sítio das escavações de Richard Leakey, no Parque
Nacional de Sibiloi. Sozinha? O Wolfgang forneceu-lhe um motorista. O cadáver
está com o dela no todo-o-terreno. Quem é o Wolfgang? O dono da pousada. O
apelido não sei. Toda a gente o trata por Wolfgang. Parece que é alemão. É uma
figura conhecida. De acordo com a polícia, o motorista tinha sido brutalmente
assassinado. Como? Decapitado. Paradeiro desconhecido, Quem? Não disse que estava
no carro com ela? Falta a cabeça. Eu é que tinha de adivinhar, não? Como é que
eles dizem que a Tessa morreu? Um acidente. É só o que eles dizem. Foi roubada?
A polícia diz que não. A ausência de roubo, completada pela morte do motorista,
punha a imaginação de Wloodrow a ferver. Diga-me exactamente tudo o que sabe.
Mildren descansou as enormes bochechas nas palmas das mãos enquanto consultava
de novo o bloco estenografado. Às nove e vinte e nove uma brigada móvel vinda
do Comando da Polícia pediu para falar ao Alto Comissário, recitou ele.
Expliquei
que Sua Excelência se deslocara até à cidade, em visita a vários ministérios e
deveria regressar às dez da manhã, o mais tardar. Pela voz, pareceu-me um
oficial muito eficiente. Deu o nome. Disse que a notícia tinha vindo de Lodwar.
Lodwar?! Mas isso é longe de Turkana! É o posto de polícia mais próximo,
replicou Mildren. Um todo-o-terreno, pertencente à Pousada Oasis, em Turkaria,
tinha sido encontrado abandonado na margem direita do lago, perto de Allia Bay,
a caminho das escavações Leakey. Os cadáveres tinham pelo menos trinta e seis
horas. Uma mulher branca, morte inexplicada, um Africano sem cabeça,
identificado mais tarde como sendo o motorista Noali, casado, quatro filhos.
Uma bota safar, Mefisto, tamanho sete. Um blusão de mato azul, tamanho
extra-grande, manchado de sangue, encontrado no chão do carro. A mulher, de
vinte e cinco a trinta anos, cabelo escuro, uma aliança de ouro no anelar da
mão esquerda. Uma corrente de ouro no chão do carro. Esse seu colar...,
lembrou-se Woodrow de ter dito em tom trocista, enquanto dançavam.
A minha
avó deu-o à minha mãe no dia do casamento, respondeu ela. Uso-o com tudo, mesmo
quando não se vê. Na cama também? Depende. Quem é que os encontrou? - perguntou
Woodrow. O Wolfgang. Mandou um rádio à polícia e informou o escritório que ele
tem aqui em Nairóbi, também via rádio. O Oasis não tem telefone. Se o motorista
não tinha cabeça, como é que souberam que era ele? Era aleijado de um braço.
Por isso é que tomou a profissão de motorista. O Wolfgang assistiu à partida da
Tessa com o Noah no sábado às cinco e meia, na companhia de Arnold Blulim. Foi
a última vez que os viu com vida». In John Le Carré, O Fiel Jardineiro, 2001,
Editora Dom Quixote, 2001, ISBN 978-972-203-048-9.
Cortesia de EDQuixote/JDACT
JDACT, John Le Carré, Literatura,