[…]
«Grande coragem foi a d'esse homem
que tantos quadros, coloridos a sangue e lagrimas, deixou de si, como herança
aos que desesperam! Era homem por ventura padre Diniz? A quem o pergunto eu?
A minha consciencia que se accusa
de mesquinha; ao meu entendimento que não concebe a resignação vencendo a dôr;
ao meu coração, que se não unge dos oleos d'esse
augusto sacerdócio do martyrio; ao meu espirito avariado nas tempestades, que
não têem podido vencer-lhe o orgulho ingenito, se é que não vae antes aqui uma
estudada filosofia!
Era homem padre Diniz?
Os homens nascem, soffrem, e
morrem assim?
Aquelle corpo que se apalpava; aquellas
faces que se abriam em sulcos ao queimar das lagrimas; aquelles olhos que vieram
de longe, procurando um tumulo; aquelles labios que se erguiam da terra, para
beijarem, em cada novo dia, o novo instrumento
d’um
supplicio novo sempre; aquelles braços que achegaram para o coração tantos
desgraçados; aquelle coração que, por não ter já prantos, recebia os prantos de
todos os infortúnios alheios… tudo que se viu… aquelle homem por ventura era o
homem que cae, que se aniquila, que reparte uma fibra por cada verme?
[…]
Em 1780, no palacio do enviado extraordinário a Roma, por alta noite, entrava uma mulher com uma criancinha ao colo. Approximou-se, com ella, do leito d’um agonisante, e a criancinha, de dois anos, estendeu os bralos a receber a mão, quasi cadáver do enfermo, que já mal a via. O agonisanto era o representante de Portugal na curia romana. A criancinha era o filho da condessa do Viso, e de dom Alvaro Albuquerque. A mulher, que tremia com ella nos braços, na presença do pavoroso quadro d’uma agonia, era a veneziana, que acompanhára Albuquerque a Roma.
N’esta
camara, lugubremente alumiada, estava um moço de trinta anos, quando muito,
braços cruzados, olhos ardentes, faces pallidas, vestido á corte de João V,
como quem saira do saráo d’um banqueiro opulento da Italia, para entrar no
quarto sombrio d’um muribundo. Era o marquez de Luso, mezes antres chegado a
Roma, com poderes novos de Dona Maria I, para negociações secretas com S.
Santidade. E o certo é que, meia hora antes, o cortezão de casaca recamada de
oiro, e o enfermo, que se estorcia no lençol ensopado de suor, um e outro,
folgados e alegres, tinham chegado d’um apolento festim, galhofando como
rapazes, que não cediam a nenhuns em gentileza, acerca de conquistas
principiadas para o que viera de Portugal depois, e conquistas desprezadas para
o que viera antes». In Camilo Castello Branco, Livro Negro de Padre Diniz, 1863, Em Casa de
F. G. Fonseca Editor, Porto, PQ9261, C3L5, 1863, University of Toronto, 2010, http://www.archive.org/details/livronegrodepadrOOcast.
Cortesia de UToronto/Editor CasaFGFonseca/JDACT
JDACT, Camilo Castello Branco, Cultura e Conhecimento, Literatura, Século XIX,