O Princípio de Arquimedes (1984)
«(…) Vai pegar na bola e não a dá
a ninguém, exactamente como faz na escola, pensava Mattia. Olhou para a gémea,
que tinha olhos iguais aos seus, nariz igual ao seu, cor de cabelos igual à dos
seus e um cérebro de deitar fora, e, pela primeira vez sentiu um ódio
autêntico. Pegou-lhe pela mão para atravessar a avenida, onde os carros passam
a maior velocidade. Foi ao atravessar que lhe veio uma ideia. Largou a mão da
irmã, coberta pela pequena luva de lã e achou que não era justo. Depois,
enquanto ladeavam o parque, mudou de ideia outra vez e convenceu-se de que jamais
alguém viria a saber. É só por algumas horas, pensou. Só desta vez. Mudou
bruscamente de direcção, puxando Michela por um braço, e entrou no parque. A
erva do prado ainda estava húmida da cacimba da noite. Michela saltitou atrás
dele, sujando as suas botinhas de camurça branca, novinhas em folha, na lama.
No parque não se via ninguém. Com
aquele frio a vontade de passear passaria a qualquer pessoa. Os dois gémeos
chegaram a uma zona arborizada equipada com três mesas de madeira e um
grelhador de carne para piqueniques. No primeiro ano escolar ficaram por ali a
almoçar, numa manhã em que as professoras os haviam levado a passear para
apanharem folhas secas, com que depois fariam horríveis centros de mesa para
oferecer aos avós no Natal. Michi, ouve-me bem, disse Mattia. Estás-me a ouvir?
Com Michela era sempre necessário certificar-se de que aquele seu estreito
canal de comunicação estava aberto. Mattia esperou por um aceno de cabeça da irmã.
Muito bem. Então, eu agora, tenho de me ir embora durante algum tempo, está
bem? Mas não demoro muito, é só meia hora, explicou-lhe. Para dizer a verdade
nem era preciso, já que para Michela meia hora ou um dia inteiro fazia pouca
diferença. A doutora tinha dito que o desenvolvimento da sua percepção
espaciotemporal estagnara numa fase pré-consciente e Mattia compreendera muito
bem o que queria dizer.
Ficas aqui sentada e esperas por
mim, disse à gémea. Michela fitava o irmão com seriedade e não disse nada, pois
não sabia responder. Não deu sinal de ter compreendido verdadeiramente mas, por
instantes, os seus olhos acenderam-se e Mattia, por toda a vida, pensou
naqueles olhos como olhos de medo. Afastou-se alguns passos da irmã, caminhando
ao contrário para continuar a olhar para ela e assegurar-se de que não o
seguia. Só os caranguejos é que caminham dessa maneira, havia-lhe ralhado a mãe
certa vez, e acaba sempre que vão bater nalgum sítio. Estava a quinze metros e
Michela já não olhava para ele, compenetrada que estava a tentar arrancar um
botão do seu casaco de lã. Mattia voltou-se para a frente e começou a correr,
apertando na mão o saco com o presente. Dentro da caixa, mais de duzentos
cubinhos de plástico batiam uns contra os outros e pareciam querer dizer-lhe
alguma coisa. Olá, Mattia, recebeu-o a mãe de Riccardo Pelotti abrindo a porta.
E a tua irmã? Está com um pouco de febre, mentiu Mattia.
Oh, que pena, disse a senhora,
que não parecia nada ter pena. Afastou-se para o deixar entrar. Ricky, chegou o
teu amigo Mattia. Vem cumprimentá-lo, gritou na direcção do corredor. Riccardo
Pelloti surgiu com uma derrapagem no pavimento e a sua expressão antipática.
Deteve-se por um segundo a olhar Mattia e procurou vestígios da atrasada.
Depois, aliviado, disse olá. Mattia levantou o saco com o presente debaixo do
nariz da senhora. Onde ponho isto?, perguntou. O que é?, perguntou Riccardo,
desconfiado. É um Lego. Ah. Riccardo pegou no saco e desapareceu de novo pelo
corredor». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José
Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT
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