Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…)
Como era de esperar, o dia foi frutífero e Ana terminou com o stok de tabaco de
contrabando que ocultava entre as suas roupas. Os sevilhanos começaram a cruzar
a ponte ou a pegar os barcos de regresso à cidade. Ainda poderiam ter lido mais
algumas sortes, mas a cada vez mais escassa multidão revelou a grande
quantidade de ciganas, algumas velhas acabadas, outras jovens, muitos meninos e
meninas esfarrapados e seminus, que estavam fazendo o mesmo. Ana e Milagros
reconheceram as mulheres do Beco de San Miguel, parentes dos ferreiros, mas
também muitas daquelas que viviam nas miseráveis choças localizadas junto ao
Horto da Cartuxa, já na veiga de Triana, e que, para obter uma esmola,
acossavam com insistência os cidadãos, se interpunham em seu caminho e lhes
agarravam a roupa enquanto clamavam aos gritos a um Deus em que não criam e
invocavam uma enfiada de mártires e santos que tinham decorado.
Creio que está bom por hoje,
Milagros, anunciou sua mãe depois de afastar-se da corrida de um casal que
fugia de um grupo de pedintes. Um garoto de rosto sujo e olhos negros que
perseguia os sevilhanos foi chocar-se contra ela invocando ainda as virtudes de
Santa Rufina. Toma, disse-lhe Ana entregando-lhe um quarto de cobre. Empreenderam
o regresso a casa ao mesmo tempo que a mãe do ciganinho tirava dele a moeda. O
beco fervilhava. Havia sido um bom dia para todos; as festas religiosas enterneciam
as pessoas. Grupos de homens conversavam na porta das casas bebendo vinho,
fumando e jogando cartas. Uma mulher se aproximou de seu marido para mostrar-lhe
seus ganhos, e entabulou-se entre eles uma discussão quando ele tentou ficar
com os ganhos. Milagros se despediu da mãe e se juntou a um grupo de moças. Ana
tinha de fazer as contas do tabaco com seu pai. Procurou-o entre os homens. Não
o encontrou. Pai?, gritou após entrar no pátio da casa em que viviam. Não está.
Ana se virou e deparou com José, seu esposo, sob a porta. Onde está? José deu
de ombros e abriu uma das mãos; na outra levava uma jarra de vinho. Seus olhos
faiscavam. Desapareceu pouco depois de vós. Deve ter ido à ciganaria do Horto
da Cartuxa para ver seus parentes, como sempre.
Ana meneou a cabeça. Estaria efectivamente
na ciganaria? Algumas vezes havia ido procurá-lo ali e não o havia encontrado.
Voltaria essa noite ou o faria ao fim de alguns dias, como tantas outras vezes?
E em que estado? Suspirou. Sempre volta, alfinetou então José com sarcasmo. Sua
esposa se ergueu, endureceu a expressão e franziu o cenho. Não te metas com ele,
bramiu, ameaçadora. Já te avisei muitas vezes. O homem se limitou a fechar a
cara e lhe deu as costas. Costumava, sim; José tinha razão, mas o que fazia
durante suas escapadas quando não ia à ciganaria? Nunca o contava, e, assim que
ela insistia, ele se refugiava naquele insondável mundo seu. Que diferença com
relação ao pai de sua infância! Ana o recordava orgulhoso, altivo, indestrutível,
uma figura em que sempre encontrava refúgio. Depois, então ela contaria uns dez
anos, detiveram-no os guardas do tabaco, os oficiais de justiça que vigiavam o
contrabando. Eram só algumas libras de tabaco em folha, e era a primeira vez
que o flagravam; deveria ter sido uma pena menor, mas Melchor Vega era cigano e
o haviam detido fora daquelas povoações em que o rei havia determinado que
deviam viver os de sua raça; vestia-se como cigano, com roupas tão caras como
chamativas, carregadas todas elas de missangas de metal ou prata; portava seu
bordão, sua navalha, seus brincos nas orelhas, e, ademais, várias testemunhas asseguraram
que o haviam ouvido falar em caló. Tudo aquilo era proibido, mais até que
fraudar impostos à fazenda real. Dez anos de galés. Essa foi a condenação que se
impôs ao cigano.
Ana sentiu que se lhe comprimia o
estômago à lembrança do calvário que vivera com sua mãe durante o julgamento e,
sobretudo, durante os quase quatro anos desde que se deu a primeira sentença até
que efectivamente levaram seu pai ao Puerto de Santa María para embarcá-lo numa
das galés reais. Sua mãe não havia esmorecido no empenho um só dia, uma só
hora, um só minuto. Aquilo lhe custara a vida. Humedeceram-se-lhe os olhos,
como sempre que revivia aqueles momentos. Voltou a vê-la pedindo clemência,
humilhada, suplicando indulto a juízes, funcionários e visitadores de cárceres.
Imploraram a intercessão de padres e frades, dezenas deles que lhes negavam até
o cumprimento. Empenharam o que não tinham…, roubaram, burlaram e enganaram
para pagar a escrivães e advogados. Deixaram de comer para poder levar um pão
dormido à prisão em que seu pai esperava, como tantos outros, que terminasse
seu processo e lhe dessem destino. Havia quem, durante aquela terrível espera,
amputasse a si mesmo uma mão, até um braço, para não ir para as galés para
enfrentar uma morte lenta e certa, dolorosa e miserável, destino da maioria dos
galeotes permanentemente acorrentados aos bancos das naus». In Ildefonso Falcones,
A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand
Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
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