quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «As pessoas se apinhavam para escutá-lo, e era então, Ana e Milagros o sabiam, que as ciganas aproveitavam o enlevo das pessoas para furtar de suas bolsas»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Por isso tentaram separar-se das pessoas quando frei Joaquín, da Ordem dos Pregadores, iniciou o seu sermão a céu aberto diante do que com o tempo seria o portal da futura igreja. Nesse momento, os piedosos sevilhanos apinhados na esplanada não estavam para sortes ou tabaco; muitos deles haviam ido a Triana para escutar outra das controvertidas pregações daquele jovem dominicano, filho de uma época em que a sensatez tentava abrir caminho entre as trevas da ignorância. Do improvisado púlpito, fora do templo, ia além das ideias de frei Benito Jerónimo Feijoo; frei Joaquín, em voz alta, em castelhano e sem utilizar latinadas, censurava os atávicos preconceitos dos espanhóis e excitava as pessoas defendendo a virtude do trabalho, mesmo mecânico ou artesanal, contra o mal-entendido conceito de honra que impelia os espanhóis à folgança e ociosidade; excitava o orgulho nas mulheres opondo-se à educação conventual e defendendo seu novo papel na sociedade e na família; afirmava seu direito à educação e à sua legítima aspiração a um desenvolvimento intelectual em benefício da civilidade do reino. A mulher já não era uma serva do homem e tampouco podia ser considerada um homem imperfeito. Não era maligna por natureza! O matrimónio devia fundamentar-se na igualdade e no respeito. No nosso século, sustentava frei Joaquín citando grandes pensadores, a alma havia deixado de ter sexo: não era varão nem fêmea. As pessoas se apinhavam para escutá-lo, e era então, Ana e Milagros o sabiam, que as ciganas aproveitavam o enlevo das pessoas para furtar de suas bolsas.

Aproximaram-se quanto puderam do lugar de que frei Joaquín se dirigia à multidão. Acompanhavam-no os pouco mais de vinte frades pregadores que viviam no convento de São Jacinto. Muitos deles levantavam, de quando em quando, o rosto para o céu plúmbeo que, por sorte, resistia a descarregar a água; a chuva teria feito malograr a celebração.

Eu sou a luz do mundo!, gritava frei Joaquín para fazer-se ouvir. Foi isso o que nos anunciou Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é nossa luz!, uma luz presente em todas estas velas que portais e que devem iluminar…

Milagros não ouvia o sermão. Fixou o olhar no frade, que pouco depois descobriu a mãe e a filha perto dele. Os vestidos coloridos das ciganas destacavam-se entre a multidão. Frei Joaquín hesitou; durante um instante suas palavras perderam fluência e seus gestos deixaram de captar a atenção dos fiéis. Milagros notou que se esforçava para não a olhar, sem consegui-lo; ao contrário, em algum momento não pôde evitar deter os olhos nela por um segundo a mais.

Numa dessas ocasiões, a moça lhe piscou o olho, e frei Joaquín gaguejou; noutra, Milagros lhe mostrou a língua. Menina!, ralhou com ela sua mãe após dar-lhe uma cotovelada. Ana fez um gesto de desculpa ao frade. O sermão, como desejava a multidão, alongou-se. Frei Joaquín, livre do assédio de Milagros, conseguiu brilhar uma vez mais. Quando acabou, os fiéis acenderam suas velas na fogueira que os frades haviam preparado. As pessoas se dispersaram, e as duas mulheres voltaram aos seus bicos. Que pretendias?, inquiriu a mãe. Eu gosto…, respondeu Milagros, fazendo um gesto faceiro com as mãos, gosto que se engane, que gagueje, que se ruborize. Porquê? É um padre. A moça pareceu pensar um instante. Não sei, respondeu enquanto dava de ombros e dedicava uma simpática careta à sua mãe. Frei Joaquín respeita teu avô e portanto te respeitará a ti, mas não brinques com os homens…, ainda que sejam religiosos, terminou advertindo-a a mãe». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia BertrandE/JDACT

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