A obra e os protagonistas 500 anos depois
«Já
muito se escreveu sobre a obra tardo-gótica de São Francisco de Évora, seja no
enquadramento da reforma arquitectónica do corpo do mosteiro, seja no detalhe
do seu programa decorativo. Sem dúvida que a qualidade da obra, no seu
conjunto, bem como as várias peças documentais que a acompanham, têm favorecido
a recorrência do tema, muito enriquecido ao longo do tempo pelo contributo de reputados
historiadores nacionais. Pese embora esta evidência, o certo é que algumas
dúvidas, imprecisões e omissões têm acompanhado a historiografia do monumento,
quer ao nível da análise dos seus elementos arquitectónicos e artísticos e
correspondentes enquadramentos temporais, quer da interpretação documental que sustenta
os factos e as figuras que lhe deram origem. Foi, precisamente, para responder
a esta constatação que nos atrevemos a insistir na análise detalhada da
empreitada tardo-gótica, sobretudo a manuelina, tentando reconstituir-lhe um
ordenamento factual e cronológico plausível.
Com efeito, relendo o que de
substantivo se escreveu até ao momento sobre o assunto, não é óbvia nem
consensual a interpretação sobre as diversas intervenções no edifício entre o
final do século XV e o início do século seguinte. Desde logo as que andam
atribuídas dubitativamente aos investimentos beneméritos de Afonso V e de seu
filho, João II, pois se do primeiro dizem as crónicas ter restaurado a
arruinada igreja gótica com sua mão poderosa, ao segundo se deve, sem dúvida,
se não a traça adoptada por Manuel I, pelo menos uma campanha intermédia de
obras, como testemunha a divisa do Príncipe
Perfeito na fachada principal da igreja, a par da divisa do Venturoso. O mesmo se pode dizer da
interpretação cronológica do ciclo manuelino que, apesar de melhor documentado,
ainda assim apresenta zonas de penumbra, quase sempre contornadas com
indisfarçável silêncio por muitos dos que se ocuparam do tema. Estão neste caso
as datas de arranque e de conclusão do corpo da igreja, alguns passos
intermédios da empreitada e, sobretudo, a interpretação de um documento com a
duvidosa data de 500, a qual tem servido, invariavelmente, para atrapalhar as
propostas de datação da obra.
A
obra inicial nos reinados de Afonso V e João II
Um dos temas onde as dúvidas
abundam é, desde logo, o do momento inicial da reforma tardo-gótica da igreja.
Se as memórias transmitidas
pelos cronistas são omissas ou inconclusivas, já José Custódio Vieira Silva,
no mais completo e assertivo estudo feito ao monumento, deu conta de um
primeiro investimento estrutural iniciado nos últimos anos da década de setenta
do século XV, o qual, prolongando-se pelo reinado de João II, acabou por ficar
circunscrito à reconstrução da capela-mor e dos braços do transepto. Em abono
desta análise, refira-se a pertinente comparação feita por este historiador às abóbadas
das cabeceiras das igrejas de São Francisco de Évora e de Nossa Senhora da Conceição
de Beja (1459-1473) com o propósito de as relacionar estilística e
cronologicamente. Só faltou à solidez da sua argumentação o necessário suporte
documental. Vejamo-lo agora: na chancelaria de Afonso V encontra-se o registo
de uma decisão régia pela qual Afonso Anes Guimarães fica obrigado ao pagamento
de mjl reais brancos para as obras
e coro de sam francisquo da nossa cidade d’evora. Este documento, datado
de Agosto de 1466 e direccionado a uma empreitada específica num edifício religioso,
parece comprovar que as primeiras obras em São Francisco já decorriam por essa época,
tendo como foco provável a zona da capela-mor, o que faz sentido pela lógica
sequencial da construção e pela referência ao coro da igreja, estrutura de aparato litúrgico, ainda
hoje, comum àquele espaço. Em reforço desta ideia, também se sabe documentalmente
que estando o rei Afonso V em Évora, em 1470, fez saber aos juízes, vereadores
e procurador da cidade que havia mandado Soeiro Mendes, cavaleiro de sua casa e
alcaide-mor de Arguim, transferir a mancebia
da proximidade do mosteiro de São Francisco para o monturo dos oleiros
num prazo de cinco meses, dando-lhe para isso uma verba de dez mil reaes dos
dinheiros das obras desta cidade e que nom cumprindo elle assy no dito tempo o avemos
por apenado em dez mil reaes pera as obras do moesteiro de sam francisco daqui.
Ou seja, em 1470 as obras continuavam e o rei impunha medidas de requalificação
e dignificação da área envolvente ao mosteiro (e ao paço régio), libertando-o
da indesejada vizinhança de casas de prostituição que aí se encontravam
instaladas pelo menos desde 1456. A urgência na resolução do problema e a
garantia financeira acordada com Soeiro Mendes são sintomas do envolvimento
pessoal do monarca no projecto da reforma da casa franciscana de Évora. Acresce
a estas duas evidências documentais um outro dado pouco ou nada valorizado pela
historiografia, a presença da cruz flordelisada numa das chaves da abóbada da
cabeceira da igreja, elemento iconográfico associado à dinastia de Avis mas
caído em desuso com João II, após 1485». In Francisco Bilou, A Igreja de S Francisco
e o Paço Real de Évora, Fernando Mão de Ferro, Edições Colibri, 2014.
Cortesia EColibri/JDACT
JDACT, Francisco Bilou, Religião, Évora, Cultura e Conhecimento,