Arquitectura e Devoção
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Por que motivo a lenda da Senhora de Aires reproduz tanto a versão do achamento,
como da aparição? Com efeito, ambas têm propósitos distintos, se a primeira
apela para a antiguidade do culto, a segunda confere à imagem pétrea um valor
sobrenatural. O trinómio, Senhora de Aires / Eremita de Arem / Almançor, tem a
peculiaridade de sacralizar historicamente o lugar e a imagem, ao situar a
veneração nos tempos antecedentes à ocupação árabe. Por sua vez, o milagre da
aparição torna palpável a presença da Virgem e a Revelação Divina, pois las
apaiciones se presentan como una manifestación sensible de lo sobrenatural.
A aparição outorga à imagem esculpida um significado transcendente,
equiparando-a às relíquias dos santos; mediante uma aparição a imagem passa a
representar e a suportar uma presença real, uma epifania.
A
intensificação do discurso aparicionista e dos achamentos, na Europa Católica,
conduziu à intervenção dos altos dignitários da Igreja. No Concílio Lateranense
(1516) e no Concílio de Trento (1545-1563) tomou-se medidas restritivas quanto
às aparições e revelações, determinando-se que não se devia admitir nenhum
milagre sem o reconhecimento e autorização dos bispos. Todavia, a predisposição
humana para a criação e aceitação de novos milagres levou Bento XIV, ainda no
século XVIII, a reiterar que a Igreja só mediante um atento exame é que
consentiria a legitimação de um novo milagre. Pese embora a limitação efectuada
nas reuniões conciliares, a proliferação dos milagres marianos não refreou,
pelo contrário, fortaleceu-se. Na verdade, o movimento reformista católico deu
um enorme contributo ao florescimento do culto mariano e à proliferação de
santuários erigidos sob a sua evocação, durante os séculos XVI e XVII, em
resposta às críticas protestantes e à relativização do papel de Maria no Milagre
da Salvação.
A
inscrição do jesuíta António Franco, de 1690, é omissa quanto à identificação
do lavrador que encontrou a imagem de Nossa Senhora de Aires no acto da
lavoura. Foi, precisamente, fr. Agostinho o primeiro a identificar o
intermediário humano, entre a população e o sagrado, com o rico lavrador Martim
Vaqueiro. E, na senda de outros lendários, a difundir a ideia de que o fundador
do templo estava enterrado no local transcrevendo, para o efeito, a inscrição
sepulcral que pavimentava o presbitério: esta capella, & sepultura he de
Martim Vaqueyro, Fundador desta casa, da nobre, & antiga geração dos
Vaqueyros.
Atendendo à inexistência no local desta lápide, o mais provável é que a sua referência tenha resultado da imaginação do compositor do Santuario Mariano; caso contrário, teria sido integrada na nova construção de 1743 e referida por fr. Francisco Oliveira nas Memorias da Villa de Vianna. Como observa William Christian, estes mediadores são os sucessores dos santos mártires e em certa medida suprem a falta de relíquias corporais dos santuários marianos. Eles contribuem para a consolidação e autenticidade da lenda, ao corporizarem o principal interveniente e beneficiário do milagre da manifestação sagrada. Se o relato da aparição, ideado por fr. Agostinho de Santa Maria, não reuniu muitos apoiantes, o mesmo não se pode dizer da identificação do beneficiário da manifestação divina, daí em diante associado ao rico e nobre lavrador Martim Vaqueiro, o fundador do templo.
A sacralização do espaço e do templo
A
escolha do local é um dos pontos determinantes das lendas, é a Virgem que elege
o sítio para a sua devoção. Os santuários são edificados em lugares precisos, lugares
onde a figura tutelar manifestou o desejo de ser cultuada, quer através da
aparição, quer do achamento da imagem sagrada. Para reforçar a ideia do local
consagrado multiplicam-se os relatos da persistência da Virgem pelo lugar
aclamado, que, no caso de Nossa Senhora de Aires, nos é relatado, uma vez mais,
por fr. Agostinho de Santa Maria:
Deo principio o Lavrador à obra em hum sitio, que ficava distante do curral, julgando-o por mais oportuno: porém a Senhora que havia elegido o do seu apparecimento, dispoz, que tudo o que se havia obrado no primeyro dia, se achasse desfeyto no segundo, & continuando a edificação em o segundo, & terceyro em a mesma paragem, lhe succedeo o mesmo, que na primeyra vez. Com que desistindo do seu parecer, se resolveo em edificar a Igreja no mesmo lugar, em que a Senhora lhe havia apparecido. E fez-se em tal fórma, que a cappela mòr se abricou no mesmo Lugar, aonde estava a porta do curral.
A perseverança das Senhoras pelo territorio da gracia, seja por via da destruição dos trabalhos feitos, seja por via das fugas da imagem escultórica, enfatizam o vínculo entre a Virgem e o local e entre o sagrado e a comunidade. Transformam o sítio num espaço de culto permanente, num ponto concreto para a devoção pessoal e colectiva. Lugares distantes da população, geralmente em meios rurais, em áreas propícias ao afastamento do mundo terreno e das tarefas quotidianas; lugares que remetem para a ideia do separado, imanente ao próprio conceito de sagrado, ao procurarem o afastamento do espaço habitado e da convivência humana diária». In Raquel Alexandra AR Seixas, O Santuário de NSA de Aires, Arquitectura e Devoção, 1743 1792, Dissertação de Mestrado em História da Arte Moderna, FCSH, Universidade Nova de Lisboa, 2013.
Cortesia de FCSH/UNLisboa/JDACT
JDACT, Raquel Alexandra AR Seixas, Monumentos, Religião, Caso de Estudo, História, Alentejo, Cultura e Conhecimento,