«Isto caiu nas minhas mãos por acaso, há pouco tempo. Até então eu não tinha noção alguma do que estava sendo feito actualmente no campo da pesquisa bíblica ou dos ataques que estavam sendo desferidos por competentes historiadores. Foi um choque para mim, e uma revelação! (...) Tomei conhecimento de toda a sorte de factos que eram inteiramente novos para mim. Que os Evangelhos, por exemplo, foram escritos entre os anos 65 e 100. Isto significa que a Igreja foi fundada, e conseguiu se manter, sem eles. É espantoso! Mais de sessenta anos depois do nascimento de Cristo! É como se alguém hoje quisesse registar as palavras e os feitos de Napoleão sem poder consultar um único documento escrito, só vagas lembranças e anedotas. A não ser pela referência a Napoleão, a citação acima poderia expressar quase literalmente, a julgar pelas cartas que recebemos e as declarações verbais que ouvimos, a reacção de um leitor contemporâneo a O santo araal e a linhaaem saarada quando foi publicado, em 1982. Na verdade, as palavras são de um romance de Roger Martin du Gard, Jean BaTois, publicado em 1912, e no próprio romance elas suscitam a seguinte resposta:
(…) não vai
demorar para que todos os teólogos de qualquer posição intelectual cheguem a
estas conclusões; na verdade, vai-lhes parecer espantoso que os católicos do século
XIX tenham conseguido acreditar por tanto tempo na verdade literal dessas
lendas poéticas.
Mesmo antes da época em que se situa este diálogo fictício, a década de 1870,
Jesus e as origens do cristianismo já tinham começado a emergir como um
florescente campo de trabalho para pesquisadores, escritores e divulgadores. Há
registo de que, no início do século XVI, o papa Leão X teria declarado: esse
mito de Cristo prestou-nos bons serviços. Na década de 1740, estudiosos já
haviam desenvolvido o que hoje reconhecemos como uma metodologia histórica válida
para o questionamento da veracidade dos relatos das Escrituras. Assim, entre
1744 e 1767, Hermann Samuel Reimarus, um professor de Hamburgo, afirmou que
Jesus nada mais fora do que um revolucionário judeu mal-sucedido, cujo corpo
fora removido do sepulcro pelos seus discípulos. Em meados do século XIX, os
estudos bíblicos alemães já haviam de facto chegado à maturidade e fora
estabelecida uma datação dos Evangelhos que, na sua abordagem e na maior parte
das suas conclusões, ainda é considerada válida. Hoje, nenhum reconhecido
historiador ou estudioso da Bíblia negaria que os primeiros Evangelhos foram compostos,
pelo menos, uma geração depois dos eventos neles descritos. O impulso da
pesquisa alemã culminaria finalmente numa posição sintetizada por Rudolf
Bultmann, da Universidade de Marburgo, um dos mais importantes, famosos e respeitados
comentadores bíblicos do século XX: de facto, penso que hoje não podemos
saber quase nada acerca da vida e da personalidade de Jesus, pois as fontes cristãs
mais antigas não mostram interesse em nenhuma das duas coisas, sendo ademais
fragmentárias e muitas vezes legendárias.
No entanto, Bultmann não deixou
de ser um cristão devoto. Justificou isso sublinhando uma distinção decisiva
entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Enquanto essa distinção fosse
admitida, a fé podia ser mantida. Se não fosse admitida, a fé se veria
inevitavelmente corroída e confundida pelos factos inelutáveis da história. Foi
a esse tipo de conclusão que os estudos bíblicos alemães do século XIX acabaram
por levar. Ao mesmo tempo, porém, o bastião da autoridade tradicional em
estudos bíblicos estava sendo desafiado também noutras frentes. Em 1863, enquanto
as controversas teses da investigação germânica permaneciam confinadas numa
esfera rarefeita de especialistas, o escritor francês Ernest Renan gerou uma
enorme discussão internacional com o seu célebre best-seller A vida de Jesus Cristo. Essa obra, que procurou desvestir o
cristianismo dos seus atavios sobrenaturais e apresentar Jesus como um homem incomparável,
foi talvez o livro mais comentado na sua época. Seu impacto sobre o público foi
imenso, e entre as pessoas que ele mais influenciou estava Albert Schweitzer.
Mesmo a abordagem de Renan, porém, viria a ser considerada piegas e marcada por
um sentimentalismo acrítico pela geração dos modernistas, que começava a despontar
no último quartel do século XIX. Cabe notar que, na sua maioria, os modernistas
trabalhavam no âmbito da Igreja, isto é, até sua condenação oficial pelo papa
Pio X, em 1907, e a introdução de um juramento antimodernista em 1910.
Nessa
altura, tanto as descobertas resultantes dos estudos bíblicos alemães quanto as
dos católicos modernistas começavam a encontrar expressão nas artes. Assim, em
1916, o romancista anglo-irlandês George Moore publicou a sua própria história
romanceada de Jesus em The Brook Kerith.
Moore causou considerável escândalo ao propor que Jesus teria sobrevivido à
crucificação e recobrado a saúde graças aos cuidados de José de Arimatéia.
Desde a publicação de The Brook Kerith,
foram muitas as versões ficcionais da história dos Evangelhos. Em 1946,
Robert Graves publicou o seu ambicioso retrato romanceado, Kina Jesus, em que
novamente Jesus sobrevive à cruz. Em 1954, Nikos Kazantzakis, autor grego
laureado com o Prémio Nobel, causou um tumulto internacional com A última tentação de Cristo. Ao
contrário das figuras de Jesus em Moore e Graves, o protagonista de Kazantzakis
morre na cruz. Antes, porém, tem uma visão do que teria sido a sua vida caso não
se tivesse submetido voluntariamente ao sacrifício final. Nessa visão, uma espécie
deflash-Jorward na
fantasia, Jesus se vê casado com Madalena (a quem desejara ao longo de todo o
livro) e gerando com ela uma família». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry
Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.
Cortesia de ENFronteira/JDACT
JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,