A plácida face anónima de um morto.
«A
plácida face anónima de um morto.
Assim
os antigos marinheiros portugueses,
Que
temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,
Viram,
afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas
praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.
O que é que os taipais do mundo escondem nas montras
de Deus?»
A Praça
«A
praça da Figueira de manhã,
Quando
o dia é de sol (como acontece
Sempre
em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora
seja uma memória vã.
Há
tanta coisa mais interessante
Que
aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo
aquilo, mesmo aqui... Sei eu
Porque
o amo? Não importa. Adiante ...
Isto de
sensações só vale a pena
Se a
gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma
delas em mim serena...
De resto,
nada em mim é certo e está
De
acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há».
Acordar
«Acordar
da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar
da Rua do Ouro,
Acordar
do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no
meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um
coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.
Toda a
manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há
manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora
em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos
os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é
eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.
Uma
espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um
alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um
entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os
sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja
ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja
ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja
A
mulher que chora baixinho
Entre o
ruído da multidão em vivas...
O
vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio
de individualidade para quem repara...
O
arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe
fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo
isto tende para o mesmo centro,
Busca
encontrar-se e fundir-se
Na
minha alma.
Eu
adoro todas as coisas
E o meu
coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho
pela vida um interesse ávido
Que
busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo
tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos
homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para
aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço
a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a
minha ambição era trazer o universo ao colo
Como
uma criança a quem a ama beija.
Eu amo
todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não
nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que
as que vi ou verei.
Nada
para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida
é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso
nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.
Dá-me
lírios, lírios
E rosas
também.
Dá-me
rosas, rosas,
E
lírios também,
Crisântemos,
dálias,
Violetas,
e os girassóis
Acima
de todas as flores...
Deita-me
as mancheias,
Por
cima da alma,
Dá-me
rosas, rosas,
E
lírios também...
Meu
coração chora
Na
sombra dos parques,
Não tem
quem o console
Verdadeiramente,
Excepto
a própria sombra dos parques
Entrando-me
na alma,
Através
do pranto.
Dá-me
rosas, rosas,
E lírios
também...
Minha
dor é velha
Como um
frasco de essência cheio de pó.
Minha
dor é inútil
Como
uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha
dor é silenciosa e triste
Como a
parte da praia onde o mar não chega.
Chego
às janelas
Dos
palácios arruinados
E cismo
de dentro para fora
Para me
consolar do presente.
Dá-me
rosas, rosas,
E
lírios também...
Mas por
mais rosas e lírios que me dês,
Eu
nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á
sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á
sempre de que desejar,
Como um
palco deserto.
Por
isso, não te importes com o que eu penso,
E muito
embora o que eu te peça
Te
pareça que não quer dizer nada,
Minha
pobre criança tísica,
Dá-me
das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me
rosas, rosas,
E lírios também…»
Poemas de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa
Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam.html
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