Para Além Doutro Oceano de C[oelho] Pacheco
«Num
sentimento de febre de ser para além doutro oceano
Houve
posições dum viver mais claro e mais límpido
E
aparências duma cidade de seres
Não
irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em pureza e em nudez
Fui
pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter
A noção
das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro
Todos
viviam na vida dos restantes
E a
maneira de sentir estava no modo de se viver
Mas a
forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho
A nudez
era um silêncio de formas sem modo de ser
E houve
pasmos de toda a realidade ser só isto
Mas a
vida era a vida e só era a vida
O meu
pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente
Com a
mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho
Sinto-me
bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel
Para
não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo
Pressinto
que é nesses momentos que o meu pensamento é claro
Mas eu
não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho
Como
uma máquina untada movida por uma correia
E não
posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham
Eu
lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu
Mas
dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas
Esta
lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer
Como
por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar
E não
pensam em que o não sentem
Neste
salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas
São a
forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras
Passeio
o meu olhar materializado e destaco de escondido nas armaduras,
Aquele
segredo de alma que é a causa de eu viver
[…]
Poema de Fernando Pessoa
Fonte:
http://www.secrel.com.br/jpoesia/fpesso.html
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