Tentações do Demónio
«(…) Gritos, havia-os, sem
dúvida. O viajante já não tinha olhos para os capitéis. Saiu do adro e
aproximou-se do muro do cemitério, que está num rebaixo do terreno, por trás da
igreja, como já ficou dito. Ali estava uma mulher que chorava, gemia e gritava,
de pé, e tendo-se o viajante chegado mais perto percebeu que ela fazia um longo
discurso, talvez sempre o mesmo, quase uma invocação, um encantamento, um
esconjuro. Tinha a mulher um retrato na mão e era para ele que falava e
suspirava. De cima do muro, o viajante, apesar dos maus olhos que tem, viu que
a retratada era uma rapariga novíssima, e bonita. Atreveu-se a perguntar que
desgosto era aquele. E soube a história duma filha que saiu do regaço de sua
mãe para emigrar, lá para as Franças do costume, onde casou e morreu com
dezoito anos. Enquanto ia ouvindo, o viajante jurava a si próprio nunca mais se
aproximar de cemitérios, pelo menos durante esta viagem. Só casos tristes de
injustiças, um soldado enforcado inocente, uma rapariguinha em flor. E como o
dinheiro custa muito a ganhar, não se esqueceu a mãe chorosa de informar o
viajante que só o transporte do corpo, de Hendaia até Portugal, custara
quarenta contos. Afastou-se esmagado o viajante, deu a propina à mulher da
chave, que sorria malevolamente, e meteu-se a caminho de Chaves. Eram horas de
almoço.
A cidade é maneirinha, quer
dizer, pequena na proporção, de bom tamanho para ser bom lugar de viver. Ao
Largo do Arrabalde tudo vai dar, e é dali que tudo parte. O viajante já almoçou,
deita contas à vida. Vai ver a matriz, que tem a singularidade de dois portais
a poucos palmos de distância um do outro, românico o da torre sineira, renascença
o da fachada, e em pensamento louva quem para construir o segundo entendeu dever
conservar o primeiro. Louva também, o viajante está em maré de louvores, será
do bom almoço no 5 Chaves, louva a cantaria aparelhada da nave, louva a magnífica
estátua de Santa Maria Maior, antiquíssima peça que na abside se mostra. E sai
louvando o sol que o espera na rua e o acompanha até à Igreja da Misericórdia,
toda em colunas torsas, como a cabeceira duma cama de bilros. Lá dentro, painéis
de azulejos forram de alto a baixo a nave e são uma festa para os olhos. O
viajante demora-se a percorrer aquelas paisagens, a investigar aquelas figuras,
e sai contente.
O viajante não vai a todos os
castelos que vê. Algumas vezes contenta-se com vê-los de fora, mas irrita-se
sempre quando dá com algum fechado. Lá lhe parece que os fechados são os
melhores, e fica-se nesta teima até que o bom senso o convence de que só lhe
parecem os melhores precisamente por estarem fechados. São fraquezas que se
desculpam. Mas a torre de menagem, que no alto da cidade se levanta, tem, ainda
por cima, um aspecto impenetrável, com aqueles lisos panos de muralha, ainda
mais frustradores. Paciência. O viajante volta as suas atenções para as
varandas da Rua Direita, sacadas de madeira, pintadas de cores escuras e
quentes, molduras que enquadram as brancas superfícies das paredes caiadas. É
um modo de viver antigo, mas por cima dos telhados florescem fartas as antenas
de televisão, nova teia de aranha que sobre o mundo caiu, bem e mal, verdade e
mentira.
Agora
é preciso escolher. De Chaves vai-se a todo o lado, frase que mais parece um
lugar-comum (de qualquer lugar se vai a outro lugar), mas aqui, para oeste estão
as serras do Barroso e do Larouco, para baixo a Padrela e a Falperra, e isto só
para falar de alturas e altitudes, que não faltam outras e tão boas razões para
a perplexidade em que o viajante se encontra. Veio a prevalecer uma que só ele
provavelmente será capaz de defender: tomou-se de amores por um nome, pelo nome
duma povoação que está no caminho de Murça, e que é Carrazedo de Montenegro. É
pouco, é suficiente, pense cada um o que quiser. Mas esta decisão não se tomou sem
intenso debate interior, tanto assim que o viajante se enganou no caminho e
meteu pela estrada que segue para Vila Real, por Vila Pouca de Aguiar. Há horas
felizes, há erros que o não são menos. O vale que se prolonga a partir de Pero
de Lagarelhos é outro daqueles que o viajante não esquecerá, e se é verdade que
alguns quilómetros adiante emendou o percurso e voltou para trás, isso mesmo se
há-de tomar como um acto de bom sentir. Continuando haveria de assistir ao fim
daquela formosíssima paisagem, naturalmente, porque tudo tem seu fim. Mas,
neste caso, não. Na memória do viajante ficou intacto o vale profundo e
enevoado de delgada bruma, tenuíssima, que parecia avivar melhor as cores
vegetais, contra o que se pode e deve esperar das brumas. Não vendo tudo, o
viajante ficou com o melhor». In José Saramago, Viagem a Portugal,
1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,